Por Denise de Alcantara, 19/7/2020 (*)
O fogo é feroz, consome com avidez. O fogo destrói florestas, vidas, bens. O fogo sufoca a história, mais uma vez.
A Estação de Trem, o símbolo, talvez único e sem dúvida o mais significante da evolução urbana de Japeri, hoje foi arrasado pelas chamas. Em poucas horas, o patrimônio histórico ferroviário se desintegrou.
Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e havia anos abandonado pela Supervia, desde 2018 o edifício estava sendo recuperado pela prefeitura após disputa judicial, com as obras em etapa de conclusão.
A que se deve o fogo? Seria criminoso? Um balão caído, uma fagulha, uma guimba lançada a esmo? Uma intenção velada pela madrugada escura e fria de um domingo de inverno seco?
Nossa Senhora Virgem de Fátima por anos a seu lado esteve, mas presa e enjaulada, protegida de vandalismos e maldades alheias, não pôde proteger o edifício do destino fatal.
O fogo é simbólico. Do descaso, da negligência, do desapego com a história, com a memória, com o bem público, a cultura. As técnicas da restauração falharam quando não previram nem evitaram o potencial das chamas. O edifício histórico, que guardava a dignidade de uma era, sucumbiu sem socorro, sem compaixão, sem salvação. O investimento na recuperação tampouco garantiu sua permanência.
Único e imponente edifício representante de uma era, erigido em 1858, seu primeiro nome foi Estação de Belém. A técnica de enxaimel inspirava-se nas construções do norte europeu, com estrutura em pilares e caibros de madeira, emoldurando a vedação em tijolo cerâmico maciço. O telhado recoberto por telhas francesas originais se dividia em quatro águas nos três elementos que configuravam a bela estação. Do corpo único e longo no primeiro piso, sobressaiam, no segundo piso, dois corpos laterais distintos, também recobertos em quatro águas encimadas por mansardas. As fachadas evidenciavam em desenhos geométricos a estrutura em madeira, as mãos francesas e os apliques. Sua relevância arquitetônica e histórica é inquestionável.
Para quem a conhecia, o habitante, os filhos da cidade, e mesmo para nós forasteiros que enxergam as potências do lugar, o incêndio da Estação de Belém tem para Japeri um peso relativo ao que a perda da sede do Museu Histórico Nacional representa para o Rio de Janeiro.
A imagética de Japeri construída pela mídia, alimentada pelas tristes notícias cotidianas que exploram a pobreza, a violência e o crime no lugar, ganha mais essa triste manchete. A Estação de Belém, quase pronta para recuperar seu uso e esplendor, transforma-se em cinzas.
É mais um retrato de um país em chamas, é mais um exemplo do descaso, da negligência, do descuido com o que é público, com o que deveria ser resguardado e protegido: a cultura, a história, o patrimônio, o ambiente, a saúde, a educação, enfim, o bem-estar da população.
Talvez das tristes cinzas ainda possam brotar sementes de esperança. A esperança que habita em cada coração japeriense, em suas memórias afetivas, em sua história de lutas e de movimentos sociais, na coesão social que segue como fio condutor de superação de tantas adversidades e privações.
Que essa perda material transformada em cinzas não seja em vão. Que faça renascer em cada ser o sentido de pertencer e defender o que é de todos por meio da ação coletiva, da participação e da inclusão.
Referências
ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS DO BRASIL. Estação de Japeri. Página da Internet. Disponível em http://www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_rj_linha_centro/japeri.htm Acesso: 22/5/2019.
MEDEIROS, L. Lugares de Memória dos Trabalhadores #23: Pedra Lisa, Japeri (RJ). 2020. Disponível em https://lehmt.org/2020/03/05/lugares-de-memoria-dos-trabalhadores-23-pedra-lisa-japeri-rj-leonilde-servolo-de-medeiros/
REIS, E.; ALCANTARA, D. Patrimônio, Identidade e Territorialidade: o SIG na proposta de uma nova imagética para Japeri. In Anais do 3o. Simpósio Científico ICOMOS/BRASIL. Belo Horizonte: UFMG, 2019.
(*) Docente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas (PPGDT/ICSA/UFRRJ) e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU/IT/UFRRJ). A autora coordena e desenvolve junto ao Grupo de Pesquisa em Transformação de Uso, Ocupação e Desenvolvimento Urbano e Regional (Gedur-UFRRJ) pesquisa sobre os conflitos e desigualdades sócio-espaciais e questões urbanas sob a perspectiva da Agenda 2030 no Oeste Metropolitano.