Pelo menos 45 milhões de pessoas no Brasil possuem algum tipo de deficiência, segundo dados do IBGE, de 2010. O mesmo censo verificou que éramos, na ocasião, 190.730.000 brasileiros. Ou seja, aproximadamente 23,5% da nossa população é formado por indivíduos com deficiência. Estes números mostram a grandiosidade e a urgência da atuação neste campo, que tem tão pouca atenção. Prova disso é que, no Brasil, no universo das instituições federais de ensino superior, somente duas universidades têm um curso de graduação em Educação Especial: a Federal de Santa Maria (UFSM) e a Federal de São Carlos (UFSCar).
A boa notícia é que a Rural será a terceira instituição pública de ensino superior do país a oferecer um curso na área – Licenciatura em Educação Especial, cujo início está previsto para o primeiro semestre de 2023. E será o primeiro no estado do Rio de Janeiro. Ao todo, serão oferecidas 400 vagas anuais em cinco polos: Seropédica, Nova Iguaçu, Três Rios, Av. Presidente Vargas e Campos dos Goytacazes.
A nova graduação será semipresencial e surgiu com as discussões realizadas no Fórum Permanente de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva da Baixada e Sul Fluminense e no Fórum Intermunicipal de Inclusão a partir dos resultados de um projeto de pesquisa coordenado pela docente Márcia Denise Pletsch, do Instituto Multidisciplinar (IM/UFRRJ), envolvendo outras instituições como a Fiocruz, a Uerj e a PUC-Rio, com financiamento da Faperj e do CNPq. Segundo ela, o projeto conta com contribuições de gestores de Educação Especial de vários municípios da Baixada e Sul Fluminense. “A epidemia do vírus Zika, no Rio de Janeiro, em 2015 e 2016, produziu uma geração de crianças com deficiência múltipla e outras deficiências, que ingressaram nas escolas em 2019 e 2020. Não há um número suficiente de profissionais da educação preparados para atendê-las”, explicou a docente. “Várias mães já vinham nos procurando para pedir ajuda. Entendemos que este é o momento adequado para pagar uma dívida pública em relação a esta parcela da população brasileira.”
O Brasil começou a se preocupar com maior seriedade sobre o assunto no início da década de 1990, mas foi somente a partir da Política Nacional de Educação Especial, na perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, que as matrículas em escolas públicas regulares ampliaram significativamente. Em 2015, a partir da criação da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), cresceu o debate no campo dos direitos humanos, como promulgado na Declaração da ONU dos Direitos das Pessoas com Deficiência. A LBI assegura aos indivíduos com deficiência inclusão no sistema de educação vigente no país, em todos os níveis e modalidades, inclusive nas universidades. E é aqui que a UFRRJ pode fazer diferença. Com o novo curso, mais profissionais serão formados para atender a esta demanda, já que a oferta de cursos de formação inicial e continuada na rede pública de ensino é exígua. A pesquisa de Carmo et all (2019) mostrou que as 12.400 vagas oferecidas no estado do Rio de Janeiro eram na rede privada de ensino. Dados do ano seguinte mostram que apenas 38,7% da população com deficiência tem atendimento educacional especializado no Brasil. É notória, portanto, a necessidade de formação no país.
Importante mencionar que o projeto da Licenciatura em Educação Especial foi discutido em várias esferas, envolvendo cerca de 40 gestores de Educação de diferentes cidades do estado do Rio de Janeiro – o segundo mais atingido pelo vírus Zika no país, sendo a Baixada Fluminense uma das regiões mais afetadas. Além do incentivo e do diálogo com os municípios, a Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/Niterói igualmente manifestou seu apoio à criação do curso em carta à comissão organizadora e à Reitoria da UFRRJ.
Depois das discussões a respeito da graduação, o projeto ganhou corpo e foi aprovado pelo Conselho de Unidade (Consuni) do Instituto Multidisciplinar (IM), pelo Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão (Cepea) de Ciências Humanas e, também, pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe), órgão máximo deliberativo da UFRRJ para a área, conforme deliberação nº 92/2022, processo nº 23083.004493/2022-01.
Envolvimento da sociedade
O apoio de entidades é importante, mas o envolvimento da sociedade é fundamental, pois ela é o público mais beneficiado por uma iniciativa como esta. O diálogo com as famílias vem ocorrendo há bastante tempo, e a notícia da criação da Licenciatura em Educação Especial chegou em boa hora. Também por meio de carta, a Associação de Famílias Vítimas da Síndrome Congênita do Vírus da Zika e Outras (Associação Lótus) registrou sua satisfação: “É com grande alegria e esperança que as famílias de crianças especiais recebem a notícia de um curso de Licenciatura em Educação Especial. Pois são incontestáveis a importância e a urgência por uma especialização a nível superior sob uma perspectiva inclusiva no ensino básico”, registrou a entidade.
O grupo, que reúne pais, mães e responsáveis por crianças com especiais, explicou que os profissionais que atuam na Educação Especial são escassos e estão sobrecarregados. Também por isso, o curso é bem-vindo: “A inclusão de uma pessoa com deficiência na escola não é feita apenas com o fornecimento da vaga, mas também com o uso de tecnologias assistivas (TA), sala de recursos, Plano Educacional Individualizado (PEI), com apoio de um Agente de Educação Especial e, principalmente, com docentes especializados em educação especial”.
Sobre a nova licenciatura, a professora Márcia Pletsch aponta que vários fatores convergem para a criação do curso: “Compreendemos que, quando temos a participação da sociedade civil e das próprias pessoas com deficiência, em parceria com as instituições de ensino, o resultado tende a ser muito positivo. Na verdade, o curso começou a ser discutido antes da pandemia do covid-19, mas somente agora ele amadureceu e está pronto para se tornar uma realidade”, comentou a professora. “É inovador porque foca nos direitos humanos das pessoas com deficiência, dando centralidade à acessibilidade e suas diferentes dimensões, assim como o uso de tecnologia assistiva, principalmente a de baixo custo, que é a mais usada nas escolas públicas.”
Núcleo de Acessibilidade e Inclusão da UFRRJ
O curso de Licenciatura em Educação Especial é mais um passo que a UFRRJ dá no contexto de uma atuação mais participativa na área da Educação Especial. A semente do curso foi plantada pelo Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI), regulamentado na Universidade em 2019, e institucionalizado em 2021, passando a ser vinculado à Reitoria. O NAI coordenou a elaboração do Plano de Acessibilidade da Rural, que é exigência legal para avaliação dos cursos de graduação e para o recredenciamento da Instituição junto ao Ministério da Educação (MEC). O Plano envolve cinco dimensões de acessibilidade: curricular/pedagógica, física/arquitetônica, comunicacional, tecnológica e atitudinal. Mas, diante dos cortes orçamentários, alguns projetos terão de ser adiados. Outros, no entanto, que já estavam encaminhados, poderão prosseguir.
De acordo com Márcia Pletsch, a ideia é que toda a Universidade esteja preparada para receber e lidar com pessoas com deficiência. Para isso, é necessário que haja adequações em algumas áreas. “Hoje, estamos implementando o Plano de Acessibilidade. Quatro institutos serão piloto: Agronomia, Ciências Biológicas e da Saúde, Veterinária e Três Rios. Em médio prazo, poderemos avaliar os primeiros resultados. Depois, vamos estender para os demais institutos”, explicou a docente, que também é coordenadora do NAI..
O instituto mais adiantado é o de Agronomia. “Fizemos um mapeamento das dúvidas de todos os servidores, sobre as diferentes dimensões da acessibilidade. A partir desse levantamento, foi criada uma comissão no instituto que atuará conosco na implementação e avaliação das ações previstas no Plano de Acessibilidade. Paralelamente, realizaremos, em parceria com a Pró-reitoria de Gestão de Pessoas (Progep), o mapeamento dos servidores e demais trabalhadores com deficiência”, contou Janaina Nogueira, coordenadora substituta do NAI.
Para cumprir mais uma etapa do Plano, neste caso, para atender à dimensão física/arquitetônica, foi assinado no dia 20 deste mês de julho, um contrato que vai executar obras de acessibilidade em três institutos: de Educação (IE), de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) e, ainda, Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). O prazo para a conclusão das novas instalações é de 14 meses. Este projeto é mais um passo que a Rural dá em direção à inclusão, tornando a Universidade mais próxima da população com deficiência.
Pós-graduação lato sensu
Ainda sob a perspectiva da inovação, a UFRRJ está coordenando a primeira pós-graduação lato sensu em Educação Especial e Inovação Tecnológica do Estado do Rio de Janeiro. Ela é resultado de uma parceria da UFRRJ com o Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado (Fundação Cecierj).
As aulas começaram em maio deste ano. A modalidade do curso é semipresencial, tem cerca de 1.700 alunos matriculados, e está sendo oferecido em 14 polos nas cidades de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Cambuci, Cabo Frio, Itaperuna, Levy Gasparian, Miguel Pereira, Paracambi, Queimados, São Fidélis, São Gonçalo, São Pedro da Aldeia, Teresópolis e Nova Iguaçu (câmpus UFRRJ).
O curso é uma parceria público-público e vai permitir a democratização do conhecimento específico da área de Educação Especial para profissionais da educação básica e dos setores de acessibilidade e inclusão já existentes nas instituições de educação do estado do Rio de Janeiro.
Para Márcia Pletsch, esta especialização “significa também o desenvolvimento da Rural como um centro de referência não só na formação de professores, mas no tema da acessibilidade na educação básica e superior. No que se refere a Educação Superior, somos uma das cinco universidades que participou da criação do Fórum Nacional de Inclusão na Educação Superior”, contou a coordenadora. “Temos muito trabalho pela frente.”
Os detalhes desta pós-graduação podem ser conferidos aqui . Leia também reportagem sobre a pesquisa realizada pela UFRRJ em parceria com a Fiocruz, Uerj, PUC-Rio e Udesc. E veja aqui reportagem sobre o lançamento do Plano de Acessibilidade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro com diretrizes e metas para 2021-2025.
Depoimentos sobre o curso de Licenciatura em Educação Especial
Professor Leonardo Pereira – Coordenador de Educação Especial da Rede Municipal de Educação de Queimados
“Para o município de Queimados, a participação no fórum se tornou um movimento reflexivo e um compromisso com uma agenda de educação inclusiva e transformadora. No fórum, conhecemos o trabalho desenvolvido pelos municípios vizinhos e, assim, tecemos um diálogo construtivo para a educação na Baixada Fluminense. Um diferencial para a nossa rede foi a aprovação e a oferta da Especialização em Educação Especial e Inovação Tecnológica, que brinda a formação docente queimadense com um curso de qualidade, que vai trazer muitos impactos para as práticas desenvolvidas com os nossos alunos. A nossa responsabilidade por uma educação pública, gratuita e de qualidade se faz no cotidiano em ações pautadas na coerência, na responsabilidade e no compromisso.”
Professora Rita de Cássia Miranda Baptista de Souza – Coordenadora de inclusão do município de Paracambi
“O fórum tem um papel fundamental no nosso município. Abriu e abre as portas para a formação continuada de nossos professores com o curso de Educação Inclusiva oferecido na parceria entre a UFRRJ e o Cederj, nessa parceria público-público. A área tem atuado nas nossas formações municipais. A partir da experiência no fórum, criamos a nossa Semana de Inclusão, que está regimentada e é um espaço de estudo e troca. Isto colocou o município de Paracambi no cenário de parcerias e conexões entre cidades. Paracambi se sente muito honrada em participar de um movimento tão dinâmico e produtivo, que eleva a inclusão, o atendimento e o aperfeiçoamento profissional a um nível cada vez mais equitativo.”
Professor Paulo José Saraiva – Diretor Acadêmico do Instituto Três Rios/UFRRJ
“A acessibilidade e a inclusão nos espaços acadêmicos e administrativos da UFRRJ são importantes para tornar a nossa Universidade cada mais democrática e plural. Garantir os equipamentos e instrumentos necessários, assim como a formação adequada de profissionais são condições necessárias para o ingresso e a permanência de discentes, docentes e técnicos administrativos que, de alguma forma, tenham uma demanda específica e/ou particular para a realização dos seus afazeres. Nessa perspectiva, a ausência de ações mais efetivas pode motivar a evasão e a desistência de pessoas cursarem ou trabalharem na Universidade. No Instituto Três Rios, identificamos a necessidade de infraestrutura, além de profissionais que permitam aos nossos cursos incluir pessoas com deficiência. Ademais, percebemos a imensa carência de profissionais qualificados para trabalhar na Educação Especial, nas escolas públicas e privadas, nos mais diversos níveis da microrregião de Três Rios. Dessa forma, aguardamos com grande entusiasmo o início do curso de Licenciatura em Educação Especial e a primeira de muitas turmas no polo do ITR / UFRRJ.”
Professor Paulo Cosme – Diretor do Instituto Multidisciplinar/UFRRJ
“O trabalho que está sendo desenvolvido pelo NAI para a acessibilidade e educação inclusiva no Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, certamente, contribuirá para a integração de esforços dos diversos laboratórios e pesquisadores do Brasil afora, nas várias especialidades a serem aplicadas à educação de qualidade. Destacamos que este trabalho de pesquisa, treinamento e aprendizagem destina-se a pessoas vulneráveis, professores, pais e profissionais que lidam com o desenvolvimento infantil até o superior. E ele coloca o próprio IM/UFRRJ como referência nacional. A UFRRJ caminha ao lado da educação inclusiva referenciada, que não pode esperar.”
Professora Andreza Amaral da Silva – Coordenadora do curso de Medicina Veterinária
“O acesso crescente de estudantes com deficiência aos cursos de graduação da UFRRJ reforça a importância do fortalecimento e consolidação das ações e estratégias estabelecidas na Política de Acessibilidade e Inclusão de Pessoas com Deficiência na UFRRJ. Vivemos essa realidade no curso de Medicina Veterinária da UFRRJ e o NAI tem sido fundamental no suporte à coordenação do curso, oferecendo apoio pedagógico em todas as fases do processo ensino/aprendizagem de forma a satisfazer as necessidades educacionais dos alunos com deficiência matriculados no curso. Em parceria com a coordenação de curso, o NAI tem nos auxiliado a definir ações e estratégias de apoio indicada para cada estudante, oferece suporte educacional e ferramentas pedagógicas aos docentes, além de acompanhamento individualizado e contínuo e os recursos de acessibilidade necessários a cada estudante com deficiência matriculado no curso. Cabe ressaltar, no entanto, que o suporte do NAI ao curso de Veterinária não se restringe à esfera pedagógica, há também direcionamento no planejamento e implementação de soluções estruturais e a orientação dos gestores e servidores com objetivo de viabilizar estratégias institucionais de acessibilidade em todos os espaços, do Instituto de Veterinária. A aprovação da Política de Acessibilidade e Inclusão de Pessoas com Deficiência deu ainda mais visibilidade ao debate em torno das ações dirigidas a acessibilidade e inclusão nos cursos de graduação da UFRRJ.”
Elizete Aparecida Fernandes Alves – mãe
“Sou mãe do Alexandre, ele é aluno de Matemática, está cursando o 3º período. Ele nasceu com atraso motor, o que afetou os movimentos dele, a fala, o que dificulta realizar ações simples como levantar sozinho da cama, tomar banho, falar claramente, dentre outras atividades. Como mãe de um cadeirante, vivo na pele cada dificuldade que ele passa, como falta de acessibilidade em certos locais. Chegando na Rural fomos muito bem recebidos, amparados para que essa experiência na faculdade fosse para o Alexandre a mais confortável possível. Agradeço aos professores e à coordenação do Curso de Matemática de Seropédica e ao NAI que possibilitaram ter aulas no PAT, um prédio com total acesso para ele, nos ajudou muito na questão da locomoção dele pela faculdade. Acompanho meu filho na escola desde o ginásio, escrevendo, levando ele para as salas, uma função de acompanhante, prevista na LBI. Nunca será fácil essa missão, mas com todo o apoio e suporte vindo da Rural, buscando proporcionar uma ótima experiência pra ele durante os anos de faculdade, vamos conseguir essa formação.”
Por Cristiane Venancio (CCS/UFRRJ)