Desembargadora denuncia: Intolerância religiosa é viés do preconceito racial no Brasil
Uma conferência sobre “Direito, Justiça e Racismo Religioso” no auditório da Universidade Rural em Nova Iguaçu marcou o início da parceria entre o Laboratório de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (LEAFRO) e a coordenação do curso de Direito do IM/UFRRJ. A palestrante foi a Dra. Ivone Caetano (foto), primeira desembargadora negra do país, que atua no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ao final da palestra, foi observado um minuto de silêncio em memória da vereadora carioca Marielle Franco, assassinada no último dia 14 de março no Rio de Janeiro.
Na mesa de abertura dos trabalhos, a magistrada foi saudada pelo diretor do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, professor Paulo Cosme de Oliveira, pelo professor Otair Fernandes, integrante do LEAFRO e pela coordenadora do curso de Direito do IM/UFRRJ, professora Débora Roland.
Como exemplo de superação dos desafios e dificuldades contra os quais se defrontou ao longo de sua vida pessoal e profissional, a desembargadora do TJ/RJ começou sua fala alertando aos alunos sobre a imensa responsabilidade que recai sobre eles, qual seja a missão de quebrar toda essa herança de injustiça, preconceito e discriminação que foi transmitida e ensinada de geração a geração no Brasil, tanto por parte do oprimido quando do opressor. Para ela, estamos vivendo essa situação de opressão desde a época do Descobrimento e da Escravidão, pois até mesmo na cabeça do negro foi incutida a ideia de submissão e subserviência.
Ivone contou que em sua época de jovem os meios de comunicação já ajudavam a sedimentar o preconceito racial contra os negros, inclusive no ensino de História do Brasil, onde a presença dos afro-descendentes sempre foi invisibilizada e distorcida pelos autores dos livros didáticos. Nesse sentido, revelou que num desses livros trazia a descrição das raças branca e negra: na primeira, a definição era “nariz fino, pele branca, cabelo liso e inteligência superior”. Na definição da raça negra, constava “nariz achatado, pele negra, nariz achatado e inteligência atrofiada”. Essa era uma das muitas violências e humilhações sofridas pelos negros, já a partir dos bancos escolares. Ao se abolir a escravidão no Brasil, os negros foram expulsos para locais sem saneamento básico e sem atendimento de saúde pública, dando origem às primeiras favelas. Ivone lembrou que havia uma lei no país que proibia os negros recém-libertados de estudar.
Ela pediu aos estudantes que exijam, em suas futuras vidas profissionais, o respeito à história do negro deste país e que dêem continuidade à luta pela igualdade racial. E com base nisso, ela fez questão de ressaltar que em todo brasileiro, independente de sua cor e raça, corre o sangue negro originário do continente africano.
“Nada é fácil para o negro no Brasil”
Como prova da veracidade dessa afirmação, a desembargadora Ivone Caetano cita como exemplo sua própria trajetória de vida. Nascida numa família humilde, ela e mais dez irmãos foram criados pela mãe, lavadeira e empregada doméstica. A futura magistrada conseguiu concluir seus estudos aos 32 anos, já casada e frisou sentir muito orgulho de sua origem e de sua trajetória, marcada por muitas dificuldades mas coroada de pleno êxito. A palestrante fez um reconhecimento também à sua mãe, que sempre lhe transmitiu muita segurança, mesmo nos piores momentos.
Independente da cor ou da opção religiosa, todo ser humano merece ter seu direito respeitado, de forma recíproca. Tal premissa foi utilizada por Ivone para justificar sua condenação ao racismo religioso, muito recorrente ainda em nosso país.
Ela classificou a prática da intolerância religiosa como “crime de ódio, que fere a liberdade e a dignidade da pessoa humana, caracterizada por um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas às diferentes crenças e religiões”. A intolerância atinge tanto as instituições religiosas como as pessoas que as professam, que cultuam suas crenças. Ivone explicou que a manifestação de intolerância pode se dar nos seguintes contextos: pela destruição de imagens e dos locais de cultos, pela agressão física e xingamentos, sendo tais práticas constantes na realidade presente do país, só que banalizadas pelas autoridades do Poder Público. Esses comportamentos intolerantes, de acordo com a magistrada, são fruto do fanatismo religioso, que induz as pessoas a promoverem guerras e conflitos uma contra a outra, em nome da religião.
Ela definiu o problema como “preocupante”, uma vez que envolve o ser humano em sua mais pura essência, quando sua crença religiosa é colocada em jogo.
Para entender tanta violência e preconceito contra o negro e contra as religiões de matriz africana, Ivone assinala ser preciso fazer uma digressão no tempo, para tentar compreender as razões para tanto ódio separatista. Recentemente, a mídia vem dando espaço a divulgação de crimes graves praticados no estado do RJ, motivados por sentimentos religiosos. Foram registrados diversos ataques a templos religiosos de matriz africana (Candomblé e Umbanda), numa demonstração de radicalismo, racismo e fundamentalismo religioso. Ela informou que em 2017, só no Rio de Janeiro foram registrados 800 atendimentos de intolerância religiosa, com uma média de dois casos a cada dia. Os números são da Secretaria Especial de Direitos Humanos e equivalem a 71,5% do total de atendimentos relativos a agressões contra religiões de matriz africana. Os católicos respondem por 9%, evangélicos tem 6% e islâmicos 3%. Segundo ela, os tipos de ataques mais praticados são discriminação, depredação, difamação e invasão. Ainda com base nos dados da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o estado do Rio de Janeiro lamentavelmente lidera o ranking nacional com o maior número de denúncias de casos de discriminação religiosa, que tem como principal alvo os cultos afro-brasileiros.
A palestrante advertiu que presenciamos no Rio de Janeiro e em todo o país um aumento expressivo e preocupante de um fundamentalismo religioso exacerbado. Ivone Caetano alertou que caso não sejam tomadas medidas urgentes para conter o seu avanço, estaremos correndo sério risco de assistirmos ao surgimento de um aparato semelhante ao Estado Islâmico no Brasil. A prova disso é o terror que espalham pelo mundo, alicerçados em sua visão fundamentalista de vida e que não contempla o respeito à diversidade religiosa. Ela explicou que existem diversas correntes fundamentalistas radicais espalhadas por diversas religiões, como no judaísmo, islamismo, cristianismo e principalmente em algumas igrejas neopentecostais espalhadas pelo mundo.
A magistrada reclamou da inexistência de delegacias para o registro das denúncias de crimes de racismo e intolerância religiosa. As legislações que punem tais crimes já existem – como a Constituição, a Lei Caó, o Código Penal e o Estatuto da Igualdade Racial -, mas não existem ainda as delegacias especializadas para o registro da queixa de tais ocorrências criminosas.
O que está por trás de toda essa violência, sem dúvida alguma, é o racismo, acentuou Ivone. Para ela, a intolerância religiosa é um dos vieses do preconceito racial e a força do negro para resistir a tanta violência e preconceito até os dias de hoje vem de sua crença e de sua religiosidade, sendo eles os maiores responsáveis pela sobrevivência das religiões de matriz africana, muito embora já existam muitas pessoas de raças não-negras adeptas dos cultos afro-brasileiros.
Apartheid social
Ela definiu o negro como uma das maiores vítimas do enorme apartheid social que temos no país, representado pelas favelas. O exemplo dado por ela foi a Linha Vermelha e a Linha Amarela, no Rio de Janeiro, onde a população residente nas favelas das proximidades é segregada por um muro, e lá dentro sofre duplamente, pela ausência do Poder Público e pela presença do tráfico de drogas, cujos criminosos tornam o povo refém de seus interesses.
Finalizando, ela cobrou das autoridades policiais do Rio de Janeiro e da Polícia Federal uma apuração rápida e rigorosa a respeito do crime que tirou a vida da vereadora carioca Marielle Franco, cobrando uma solução que prenda os responsáveis e se apure o motivo deste bárbaro assassinato. Ela sonha em ver o Brasil não somente um país, mas de fato uma nação, onde todos os homens um dia entendessem que Deus é único, embora reverenciado e respeitado em diferentes idiomas e dialetos. Deus, por ser a força criadora do Universo, não pertence a ninguém mas ao mesmo tempo pertence a todos. E em relação à justiça, a desembargadora defendeu que haja respeito à liberdade de culto e de crença, a partir não apenas do arcabouço jurídico já existente, mas também como iniciativa vinda da consciência das pessoas. Todos têm o direito de professar a religião que melhor nos conecta com Deus e todos temos o dever, com este Deus, de respeitar a opção religiosa de cada um.
Por Ricardo Portugal – Assessoria de Imprensa do IM/UFRRJ