1. Ocupar o lugar em que você está hoje, certamente, foi uma jornada que contou com muitos obstáculos. Como foi sua trajetória para se tornar a primeira mulher trans a ocupar o cargo de pró-reitora na Rural?
Resposta: Eu digo sempre que a luta nos escolhe, e não o contrário. Digo isso porque nunca esteve no meu radar a possibilidade de fazer parte da equipe de gestorxs da Administração Central. Sou docente da Rural desde 2012. Antes disso, fui professora da UFMA por 2 anos. Sou da periferia de São Paulo; feminista; pessoa preta e filha de pai cearense e mãe piauiense. E desde sempre fui uma pessoa desobediente das normas de gênero. Então já sabia que minha trajetória não seria fácil e desde cedo tinha a consciência de que só “seria alguém” por meio da educação. A educação foi minha tábua de salvação. Por isso que sempre agarrei as oportunidades que me apareciam com unhas e dentes. Pois bem, em 2020, em plena pandemia, fui convidada a integrar a chapa que concorreria à eleição para a Reitoria. No começo, achei tudo muito estranho porque nem imaginava que o professor Berbara, então reitor da UFRRJ, soubera da minha existência e do meu trabalho. Pensei: “a luta me chamou pra arena”. Sabia que minha presença ali podia dizer muito a muitas pessoas. No lugar de um homem cis-hetero-branco – como normalmente vemos – havia o corpo de uma bicha preta (era assim que eu me identificava na época). A chapa foi eleita e assumimos a Administração Central no início de 2021. Apesar de já estar em fase de transição, ainda me apresentava no gênero masculino. Ao longo dos meses, o processo de afirmação de gênero foi avançando, até que chegou o momento – isso em dezembro de 2022 – de eu assumir publicamente minha transexualidade. Sim, é um ato de coragem. Romper com o privilégio masculino e enfrentar uma sociedade historicamente misógina e transfóbica é ter a consciência de que será preciso “matar um leão por dia”. De um modo geral, não tive problemas práticos ao afirmar minha transexualidade. Até porque as pessoas próximas – familiares, amigxs e colegas de trabalho – já acompanhavam esse processo de perto ou pelas redes sociais, uma vez que em momento algum escondi minha condição e minhas escolhas. Mas não estamos no “paraíso”: o preconceito, a discriminação em forma de transfobia acontece na Universidade, mas de forma escamoteada, cínica e, por isso, de difícil comprovação, mas igualmente violento e devastador.
2. Que peso você atribui à ocupação desse posto na Administração Acadêmica e como você vê seu papel inspirando outros estudantes trans?
Resposta: Mesmo com a transfobia institucional, tenho conseguido aliadxs, bons parceirxs de trabalho para que as ações de fato aconteçam. Sei que a minha responsabilidade é enorme, pois represento uma população que historicamente foi alijada de sua própria humanidade. Então tenho consciência do quão importante é a minha presença e atuação em cargo tão relevante e de tamanha visibilidade numa universidade gigantesca que á a Rural.
3. A Rural foi uma das primeiras universidades federais do país a implementar cotas para alunos transexuais, com a proposta inclusive sendo relatada por você e pelo pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação, José Luis Luque. De que forma você acha que essa decisão fortalece o compromisso da instituição com uma educação mais igualitária?
Resposta: Queremos uma universidade moderna e que dialoga com a sociedade atual. Para isso, temos que assumir uma universidade plural, diversa e inclusiva. Ainda mais quando se trata de uma instituição cravada na Baixada Fluminense. Por isso, a deliberação que regulamentou cotas para pessoas trans, refugiadas e quilombolas na pós-graduação é uma ação que vai além da inclusão, mas trata-se de reparação histórica. Espero que esse movimento continue na Rural para, quem sabe, continuarmos o pioneirismo e sermos a primeira universidade do Estado do Rio de Janeiro a regulamentar cotas para pessoas trans na graduação e em concursos públicos. Importante mencionar também que além dessa deliberação histórica, tivemos outras conquistas para a população trans da Rural: a regulamentação do uso do nome social foi atualizado e desburocratizado; o uso de banheiros binários (masculino e feminino) deve ser utilizado de acordo com a identidade de gênero autodeclarada. E a criação de banheiros neutros nas instalações da Rural. O respeito ao nome social e ao uso do banheiro são primordiais para garantir o respeito e a permanência das pessoas trans em qualquer instituição de ensino. Garantir o acesso à população trans é muito importante, mas igualmente importante é assegurar também a dignidade para que essas pessoas permaneçam na universidade.
4. Na sua visão, como a UFRRJ está trabalhando para educar a própria comunidade acadêmica sobre questões relacionadas à identidade de gênero?
Resposta: A Rural possui pesquisadorxs de excelência nas áreas dos estudos de gênero, relações étnico-raciais, educação especial. Apesar de ser importante, não é o suficiente para brecar as violências, sobretudo situações de transfobia. Isso porque precisamos de ações permanentes, institucionais e sistemáticas para que possamos envolver toda a comunidade universitária, incluindo xs terceirizadxs. Temos realizado em todos os campi da Rural campanhas de prevenção à violência com a intenção de sensibilizar as pessoas em torno das pautas das mulheres, LGBTQIA+ e população preta. Temos realizado também cursos de formação sobre as temáticas com os guardas universitários, servidorxs e estudantes. Mas é um trabalho de operário e artesanal, cujo resultado não é imediato. É importante que a Rural, de fato, assuma esse compromisso em torno da luta contra todos os tipos de violência. E esse compromisso não pode ser só meu ou seu. Deve ser de todo mundo!
5. Como você vê o futuro da visibilidade trans na academia e quais são os passos necessários para avançar nessa direção?
Resposta: Somos poucxs ainda. É possível contar nos dedos. Não é fácil romper a barreira branco-cis-hetero-patriarcal. E as poucas que conseguem ultrapassar os obstáculos, chegam à academia e são vítimas de assédio e violência das mais diversas gradações. Uma rápida pesquisa no Google, e está tudo lá. No entanto, não há como ter retrocessos. Estou numa universidade e sou pró-reitora. Eu sou uma realidade. Tal como a Megg Raiara, docente na UFPR. Leticia Carolina, na UFPI, Luma Andrade, na UNILAB. Jaqueline Gomes de Jesus, no IFRJ. Sara Wagner York brilhando como primeira âncora travesti do Brasil na TV 247. E outras que estão fazendo a diferença em seus campos de atuação. São essas pessoas que, junto a aliados e aliadas vão, gradativamente, garantindo cada vez mais visibilidade e DIGNIDADE à população trans. Por enquanto sou a primeira e única pró-reitora trans do Brasil. Mas espero que logo outras pessoas trans, travestis ocupem esses espaços, de modo que isso seja naturalizado. No fundo, o meu trabalho é para isso. Eu entrei e quero que outrxs também entrem e tenham a oportunidade de fazer suas escolhas e trilhar trajetórias de vida dignas e humanizadas.
Entrevista: Nicole Lopes, bolsista de Jornalismo sob supervisão da Coordenadoria de Comunicação Social
Edição: Fernanda Barbosa, jornalista e coordenadora da Coordenadoria de Comunicação Social
Imagem: acervo pessoal