A tarde de 24 de setembro de 2024 foi mais um desses momentos históricos na trajetória centenária da Universidade Rural. Em sua 421ª reunião ordinária, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) aprovou a política de reserva de vagas na graduação para pessoas travestis e transexuais. Essa cota começa a valer já no ano que vem e vai abranger todos os cursos, turnos e câmpus da UFRRJ.
De acordo com a proposta, 3% das “vagas supranumerárias” serão destinadas a candidates, candidatas e candidatos que se autodeclararem pertencentes ao grupo específico dessa chamada. Ou seja, as vagas dessa seleção não vão interferir naquelas da ampla concorrência ou das outras políticas de cotas. Em outras palavras, a cota trans não vai “retirar vaga” de ninguém.
A entrada será feita com base na nota do Enem, mas não pelo Sistema de Seleção Unificado (Sisu) – haverá um edital específico (como é feito no caso das vagas remanescentes). Além da autodeclaração, será feita uma análise documental, que avaliará, por exemplo, se o/a postulante possui RG com nome social.
“Esta política que aprovamos agora foi construída por muitas mãos, num processo coletivo que envolveu movimentos sociais, grupos organizados de estudantes, sindicatos de professores (Adur) e técnicos (Sintur)…. Não foi fácil, mas vencemos!”, disse a professora Joyce Alves, relatora da minuta da proposta e primeira pessoa trans a ocupar uma pró-reitoria na Rural (adjunta de Assuntos Estudantis).
Em sua fala na reunião, Joyce resumiu os principais pontos da política, pontuando sua apresentação com o relato de sua própria trajetória de luta:
“Quando cheguei à Rural em 2012, vinda de São Paulo, me disseram para tomar cuidado com a homofobia na instituição. Naquele momento, fui plenamente acolhida pelo Grupo Pontes, pioneiro nessa luta aqui na UFRRJ. De lá para cá, avançamos muito contra a LGBTQIA+fobia, o racismo e o assédio, com conquistas como a criação do banheiro neutro e a adoção da política de cotas para trans na pós-graduação (fomos a primeira universidade a aprovar isso). Hoje a gente entra numa Universidade Rural muito mais diversa”.
‘A convivência com a diferença nos faz aprender’
Numa sessão marcada por forte emoção, a Sala dos Órgãos Colegiados foi pequena para acolher um público composto por pessoas trans, estudantes, servidores e demais integrantes da comunidade universitária. Com sorrisos no rosto, faixas estendidas e gritos de ordem, a audiência vibrou quando o reitor Roberto Rodrigues anunciou a aprovação, por aclamação, da mais nova política de cotas da UFRRJ.
“A convivência com a diferença nos faz aprender, e a Rural está aprendendo a viver com as diversidades que a compõem. Precisamos defender essa inclusão”, disse o reitor.
Na sequência de participações, também ficou clara a satisfação de quem defendia uma causa justa e testemunhava, naquele momento, o nascimento de um marco histórico.
Numa das participações mais tocantes, a estudante Mabel Almeida, do Coletivo Madame, não segurou as lágrimas ao afirmar que ela e outros estudantes trans “não vão mais se sentir sozinhos na batalha para sobreviver e na luta contra o preconceito dentro da Universidade”.
Para a professora Ana Vaz (Jornalismo/UFRRJ), conselheira do Cepe, a decisão daquela tarde ajudou a “abrir mais a mente da academia, que precisa se livrar de um bolor colonial que marca sua história no Brasil”.
Já para Meyre Valentim, representando o sindicato dos técnicos, a concretização da política de cotas se soma à luta do Sintur-RJ. A organização também distribuiu uma nota de apoio, destacando que “a adoção de cotas específicas para pessoas trans representa um avanço significativo no combate às desigualdades estruturais”.
Também estevirem presentes a parlamentar Dani Balbi, primeira deputada estadual transexual do Rio de Janeiro, e a ativista trans Bruna Benevides, atual presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Elas manifestaram a satisfação por terem ajudado a construir e participado do momento da aprovação da política na Rural.
“Precisamos de universidades públicas robustas, com a nossa cara! Precisamos de cotas para pessoas trans e travestis porque as cotas abrem portas!”, escreveu Dani Balbi.
“Ontem eu saí de casa às 8h35. Cheguei em Seropédica às 12h45… Percorri cerca de 120 km para estar presente neste momento histórico!!! Não tem preço lutar coletivamente por ações que impactam a vida material de nossa comunidade! Feliz de ver essa revolução acontecer e fazer parte dela!”, afirmou Bruna Benevides em post no Instagram.
‘Por que cotas trans na UFRRJ?’
Este foi o título do panfleto distribuído pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Proaes), em coautoria com o grupo “Orgulhe-se! LGBTQIA+ Rural”. O texto trazia dados concretos sobre o peso da desigualdade que aflige as pessoas transexuais e travestis em nosso país.
Reproduzindo pesquisa da Antra, o documento informava que 70% da população trans não consegue concluir a Educação Básica e que apenas 0,02% desse contingente consegue entrar na universidade pública (ambos os dados referentes a 2022).
Este é apenas um dos argumentos fortes em favor da adoção da política de cotas para esta parcela da população, que ainda sofre muito preconceito e violência (o Brasil, ainda segundo a Antra, é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo pelo 14° ano consecutivo [2023]).
Com a aprovação do dia 24, a Rural se torna a 17ª universidade pública no Brasil (11 federais e quatro estaduais) a adotar uma política afirmativa para esse grupo socialmente vulnerável.
“A aprovação da política de cotas para pessoas transexuais e travestis na Rural sinaliza que a Universidade está em sintonia com as diretrizes dos Direitos Humanos e conectada às demandas do nosso tempo. Esse tipo de ação afirmativa, numa região pobre e violenta como a Baixada Fluminense, pode ser um farol de esperança para essa comunidade que é tão vulnerável e frequentemente desumanizada. É a possibilidade de vidas possíveis, com dignidade, pertencimento e empregabilidade”, avaliou a pró-reitora Joyce Alves.
Texto e fotografias: João Henrique Oliveira (CCS/UFRRJ)