No próximo dia 20 de outubro de 2025, a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) vai comemorar 115 anos de origem. A instituição que conhecemos hoje evoluiu a partir de um “embrião” inicial: a Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária (Esamv), criada em 1910.
Ligada ao Ministério da Agricultura, a Esamv era uma entidade eminentemente agrária, planejada para atender aos anseios das elites da Primeira República (1889-1930). Desde então, muitas transformações ocorreram na história da centenária UFRRJ – metamorfoses que foram vividas pari passu com as mudanças pelas quais o próprio país e o mundo passaram ao longo do século XX.
Em nossa série sobre os 115 anos, vimos que a instituição mudou de nome várias vezes, além de ocupar diferentes sedes ao longo da Primeira República; já na época do primeiro governo Vargas (1930-1945), consolidou-se como referência no ensino agronômico do país; nos anos 40, mudou-se para o Km 47, habitando até hoje a casa que é um dos mais belos câmpus do Brasil; entre 1964 e 1985, atravessou a tempestade sombria da ditadura, sentindo a repressão na carne, mas resistindo e se expandindo; e no final do século passado, sintonizada à redemocratização do país, fortaleceu seus mecanismo de democracia interna e começou a vislumbrar a possibilidade de ir além de Seropédica.
Mas é no século XXI que a UFRRJ vai iniciar uma transformação sem precedentes em sua própria identidade. Nesse sentido, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), instituído em 2007, representou um divisor de águas, com criação de cursos e inauguração de dois novos câmpus .
Neste nosso século, a Universidade Rural também enfrentou e superou bravamente as crises que surgiram – como as restrições orçamentárias, os ataques à democracia e o negacionismo científico. Além disso, manteve-se firme no enfrentamento de uma das mais graves tragédias sanitárias da humanidade: a pandemia de Covid-19.
Em sua trajetória recente, a UFRRJ rumou para a modernização. Do passado agrário e conservador, a instituição entrou na revolução tecnológica, com o processo 100 % digital e o teletrabalho agora fazendo parte de seu cotidiano administrativo.
No campo da promoção da igualdade, a Rural se notabiliza por sua política de cotas e por seu programa de assistência estudantil. A UFRRJ fez história ao aprovar, em 2024, a política de reserva de vagas na graduação para pessoas travestis e transexuais, além de ser a primeira instituição pública de ensino superior a ter uma mulher trans no cargo de pró-reitora.
Neste quarto e último episódio da série sobre os 115 anos da Universidade, vamos detalhar alguns dos marcos históricos da trajetória da UFRRJ nas primeiras décadas do século XXI.
A adesão da Universidade ao plano de expansão e interiorização do governo federal de 2005 (Expansão Fase 1) e ao Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidade Federais (Reuni – Decreto nº 6.096/2007) representou uma revolução em sua história. Marcada pela tradição nas áreas Agrárias, Biológicas e Exatas, a UFRRJ chegou ao final do século XX com um total de 22 cursos de graduação. Atualmente, a Rural tem 56 cursos de graduação presencial, além de dois cursos a distância (conforme dados do catálogo institucional de 2021).
A Expansão Fase 1 resultou na criação dos câmpus Nova Iguaçu e Três Rios. Neste período, foram iniciados seis cursos em Nova Iguaçu no ano de 2006: licenciaturas em Matemática, História e Pedagogia; e bacharelados em Ciências Econômicas, Administração e Turismo. Em Três Rios, tiveram início, em 2008, os cursos de Administração e Ciências Econômicas.
Já o Reuni resultou na criação de 24 novos cursos de graduação nos três câmpus, expandindo as áreas de conhecimento e atuação da Universidade. A criação de novas graduações foi planejada para atender as demandas dos municípios onde a Rural está sediada, notadamente nas regiões da Baixada e Centro-Sul Fluminense (clique aqui para ler matéria que traz a lista detalhada dos cursos criados na fase do Reuni).
Outros cursos foram surgindo depois do Reuni. A Licenciatura em Educação do Campo, por exemplo, foi criada em 2014, após ofertas de turmas por edital do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). A oferta de vagas em Economia Doméstica foi suspensa a partir do 1° período letivo de 2015; e neste mesmo ano foi criado o curso de Serviço Social. Em 2024, o Instituto Três Rios anunciou a criação do novo curso de Ciência de Dados.
A Universidade também oferece cursos na modalidade a distância (EAD) em Administração (criado em 2006) e em Licenciatura em Turismo (criada em 2009) – ambos vinculados ao consórcio formado pelas universidades públicas e a Fundação Cecierj. Em 2022 foi criada a Licenciatura em Educação Especial, totalmente a distância, ofertada nos quatro câmpus da Rural (Seropédica, Nova Iguaçu, Três Rios e Campos de Goytacazes).
O ano de 2010 foi muito especial para a UFRRJ, que comemorou seu centenário de origem. Os festejos incluíram uma série de eventos, com destaque para as cerimônias de entrega da medalha comemorativa, cunhada pela Casa da Moeda do Brasil com o título “100 Anos de Educação: da ESAMV à UFRRJ (1910-2010)”.
No ano seguinte foi realizada uma sessão especial no Senado Federal, por iniciativa do então senador Lindbergh Farias (assista aqui a um vídeo da fala do parlamentar na ocasião).
As comemorações do centenário também receberam destaque na imprensa, como na reportagem do Repórter Rio, da TV Brasil:
Ainda em 2010, o câmpus Seropédica recebeu a visita do então ministro da Educação Fernando Haddad, que elogiou a forma como a Rural estava promovendo o Reuni. “A Universidade está sabendo aplicar muito bem os recursos para sua expansão”, disse Haddad, que também recebeu a medalha do centenário das mãos do então reitor Ricardo Miranda (veja aqui como foi a cobertura realizada pelo Rural Semanal, antigo informativo da UFRRJ).
Além dos novos câmpus, o Reuni trouxe um significativo crescimento dos cursos de graduação, que diversificaram as áreas do conhecimento e passaram a atender um público maior. O acesso também foi ampliado pela adesão ao Enem, em 2009, além da implementação de políticas de cotas e de programas de assistência estudantil. Neste século, a Rural se consolida definitivamente como uma instituição plural e inclusiva.
A Rural já centenária iria aprofundar ainda mais a transformação de seu perfil do passado – eminentemente elitista e masculino – ao escolher a primeira mulher reitora de sua história: a professora Ana Dantas, que ocupou o cargo entre 2013 e 2017.
“Olho para uma galeria composta por homens, a maioria deles das Ciências Agrárias. E eu, mulher, do Instituto de Educação, pedagoga, consegui estar à frente de uma universidade federal como a nossa”, disse a professora em 2022, num evento que celebrava a inclusão de seu retrato (e de outros ex-reitores) na galeria exposta no Gabinete da Reitoria. “Fui a primeira a quebrar um paradigma. Mas que, em breve, a gente tenha uma reitora representando a comunidade quilombola, outra representando a comunidade indígena… Que a gente consiga ter nesta Universidade a presença dos povos originários também em sua gestão. Que continuemos a quebrar os paradigmas”.
Em 2012, destaque para dois títulos de Doutor Honoris Causa. Em 4 de maio daquele ano, Luiz Inácio Lula da Silva recebeu o título que foi concedido pelas cinco universidades federais do RJ: Rural, Unirio, Uerj, UFF e UFRJ. A cerimônia foi realizada na capital fluminense, com presença da então presidenta Dilma Roussef e do reitor da UFRRJ Ricardo Miranda. Em setembro, o filósofo e teólogo Leonardo Boff recebeu o título no Auditório Gustavo Dutra, câmpus Seropédica.
A partir de 2016, a Universidade vai enfrentar crises que vão atingir não só ela, mas as demais instituições públicas do país. Depois do período de expansão, vivido de 2004 a 2010, a escassez de recursos vai se aprofundar, especialmente depois da adoção da Emenda Constitucional 95, de 2016, conhecida como “teto de gastos” – uma proposta criada pelo governo de Michel Temer (2016-18).
Segundo análise de Miguel San Romão, “a medida relegou a segundo plano a crescente necessidade de manutenção e de novos investimentos nas universidades federais, decorrente da própria expansão realizada nos anos anteriores”. Ainda de acordo com o autor, os investimentos do governo federal “caíram abruptamente de R$ 6,586 bilhões em 2014 para apenas R$ 413 milhões em 2021, penúltimo ano do governo Bolsonaro” – o que representou uma redução de 93%.
Em outra análise sobre os efeitos do “teto de gastos” nas universidades brasileiras, afirmou-se que houve, a partir daí, “uma queda significativa no financiamento para custeio e investimento, acompanhada do aumento da participação dos TEDs [Termos de Execução Descentralizada], o que compromete a autonomia financeira das universidades e agrava desigualdades regionais na distribuição de recursos”.
Para além das dificuldades financeiras, a segunda década de nosso século foi marcada pela ascensão ao poder de grupos que atacavam francamente as instituições democráticas, além de contestarem o próprio papel da ciência e das universidades.
Diante do quadro de obscurantismo e reacionarismo, as universidades se tornaram trincheiras de defesa da democracia, da ciência e da pluralidade. Entre diversas mobilizações e atividades desenvolvidas na Rural, ganhou destaque o curso de extensão “A universidade brasileira e o golpe de 2016”, organizado pelos professores Pedro Campos (História) e Vladimyr Lombardo Jorge (Ciências Sociais). Na abertura do evento, o então reitor Ricardo Berbara sublinhou o papel de vanguarda da instituição: “A Universidade Rural se posiciona em favor das liberdades, dos direitos humanos, do desenvolvimento social e do fortalecimento do ensino público, gratuito e de qualidade em nosso país”.
Já na virada dos anos 2019 e 2020, o mundo vivenciou, estarrecido, o despontar de uma das mais graves tragédias sanitárias da humanidade: a pandemia de Covid-19. Nessa batalha épica pela vida, a Rural se uniu às demais instituições públicas que defendiam a ciência. No combate ao negacionismo e à desinformação, a Universidade fez uma série de ações, entre elas a produção de álcool 70° e a promoção de campanhas de vacinação em seus câmpus.
Como todos no planeta, a UFRRJ teve de se reinventar para lidar com o isolamento social, criando ferramentas para continuar ativa em modo remoto — tanto no âmbito acadêmico como no administrativo. Na ocasião, foi criado um site especial – https://coronavirus.ufrrj.br/ – onde a instituição divulgava ações, comunicados oficiais e informações úteis para orientação da comunidade universitária e da sociedade em geral.
Com o avanço das vacinação e o arrefecimento da fase mais aguda da pandemia, a Universidade foi promovendo o retorno gradual e seguro da presencialidade, que se realizou a partir de março de 2022.
De seu passado agrário e conservador, a instituição também vem se modernizando no campo da tecnologia. Dois exemplos nessa linha: os fluxos de processos administrativos em modo 100% digital e a presença do teletrabalho no contexto do Programa de Gestão e Desempenho (PGD).
Com início dos primeiros testes em 2018, a ferramenta da Mesa Virtual – funcionalidade do Sistema Integrado de Patrimônio, Administração e Contratos (Sipac) – já faz parte do cotidiano administrativo da Rural.
“As vantagens [do processo 100% digital] são muitas. Teremos mais agilidade na circulação do processo, redução de papel e economia de espaço no arquivamento”, apontava em 2018 o então pró-reitor de Planejamento, Avaliação e Desenvolvimento Institucional, Roberto Rodrigues – atualmente reitor da UFRRJ. “Isso vai reduzir custos também, pois não haverá necessidade, por exemplo, de enviar malote para um dos câmpus fora de Seropédica. Outro benefício é a transparência, já que qualquer pessoa pode consultar o processo, desde que não seja classificado como sigiloso”.
Já o PGD, regulamentado em 2022 pelo Conselho Universitário, vem se afirmando como instrumento de gestão focado na entrega por resultados e na qualidade dos serviços prestados à sociedade. Ao lado da modalidade presencial, o programa possibilita a adoção do teletrabalho (parcial ou integral), que se relaciona diretamente com as trocas em ambientes virtuais, traço característico deste nosso século.
No avanço de sua agenda plural e inclusiva, a UFRRJ deu um passo importante ao aprovar, em 2024, a política de reserva de vagas na graduação para pessoas travestis e transexuais. Além disso, a Universidade também entrou para a história por ser a primeira instituição pública de ensino superior a ter uma mulher trans no cargo de pró-reitora – a professora Joyce Alves.
Em seu longo caminhar histórico de 115 anos, a UFRRJ de hoje mira o futuro e vai se firmando, dia a dia, como referência científica e cultural da Baixada Fluminense, de Três Rios e de Campos dos Goytacazes.
“É muito gratificante fazer parte dessa história”, disse o reitor Roberto Rodrigues. “Uma universidade que surgiu das Agrárias, mas que atualmente é multidisciplinar, principalmente após sua expansão. Hoje a Rural vem desempenhando papel de destaque em todas as áreas do conhecimento, assumindo por inteiro uma política de acesso de pessoas menos favorecidas à universidade pública”.
Texto e pesquisa: João Henrique Oliveira (CCS/UFRRJ)
Arte: Samuel Tavares Coelho (CCS/UFRRJ)
Fotografias: acervo CCS/UFRRJ