Por Michelle Carneiro (CCS/UFRRJ)
Convidado para proferir a conferência de abertura do V Congresso Nacional de Letras do Instituto Multidisciplinar (V Conalim), em 22 de outubro, o educador português José Pacheco proporcionou aos estudantes do câmpus Nova Iguaçu uma manhã inspiradora. Em entrevista ao Rural Semanal, o idealizador da Escola da Ponte, em Portugal, e diretor pedagógico dos projetos de formação da EcoHabitare, comentou os desafios e oportunidades das universidades brasileiras para transformar a sociedade.
Somos uma universidade no coração da Baixada Fluminense, uma região de profunda desigualdade de aprendizagem e de oportunidades. Qual o papel que a UFRRJ pode desempenhar para a transformação dessa realidade?
José Pacheco – Antes de qualquer coisa, eu devo dizer que estou muito grato pelo convite. Aquilo que eu digo em qualquer universidade é que são necessários três movimentos para realmente gerar condições de igualdade, de aprendizagem e de justiça social. O primeiro é honestidade intelectual; o segundo, aquilo que eu designaria por autonomia moral; e o terceiro, assumir um compromisso ético com a educação.
O que devemos entender por honestidade intelectual?
J.P. – Honestidade intelectual porque somos profissionais da educação, somos seres conscientes daquilo que fazemos, conhecedores da teoria e, portanto, é preciso colocar a teoria em coerência com a prática. O que me parece é que há muita desonestidade intelectual, não aqui em Nova Iguaçu, mas em outros lugares. Ou seja, tudo que está na teoria, que se escuta nos congressos e tal, não está na prática. Há uma sofisticação do discurso e a miséria na prática continua, a desigualdade continua, o analfabetismo, tudo isso continua.
E autonomia moral?
J.P. – Autonomia moral é porque todas as práticas que acontecem, e não é só nas universidades, mas em todos os sistemas de ensinagem, têm que passar por um sistema de aprendizagem.
E o compromisso ético com a educação?
J.P. – Nós sabemos que esse modelo que vem do século XIX não funciona. Então, se do modo como eu trabalho eu não ensino a todos, eu tenho direito de continuar a trabalhar desse modo? Vamos ser éticos. Vamos ter vergonha na cara! Então, eu venho aqui para conversar e para perguntar se querem realmente que esses três componentes da mudança aconteçam. Tão simples… Estás a ver? Eu sou uma peste [risos].
A formação dos docentes de educação básica pela universidade pode ser um ponto de inflexão para essa mudança?
J.P. – Pode e deve. Eu fui formador de professores na universidade; fui formador de formadores; diretor de Centro de Formação; consultor de formação; avaliador de formação; membro do conselho nacional para formação; e fiz uma dissertação de mestrado sobre formação. Concluí que formar é impossível. Ao fim de 40 anos, foi a minha conclusão. Mas transformar é necessário. O que é preciso na formação de professores é a reelaboração da cultura do professor, a partir daquilo que ele é e daquilo que sabe.
Como isso pode acontecer?
J.P. – Valorizando o que o professor sabe, a aula e tudo isso, mas partindo para outra coisa, com três princípios. O primeiro é o isomorfismo, o modo como o professor aprende é o modo como o professor ensina. Segundo, a teoria nunca vem antes da prática. Terceiro, o professor não é objeto de formação, ele é quem se capacita, é sujeito de aprendizagem no contexto de uma equipe e de um projeto. Se for feito isso, tudo se resolve. Ou quase tudo.
Qual a importância, no atual cenário político brasileiro, de valorizarmos a universidade pública e gratuita?
J.P. – Porque é o que está na lei. O artigo 205 [da Constituição Federal] diz que a educação é um direito – e é um direito até o fim da universidade. Só com uma diferença: até o fim do Ensino Médio é obrigatório, depois, não. Então é preciso reforçar esse direito. Eu sou professor de ensino público há 52 anos, e hei de morrer assim, no chão de escola. O fato de haver escolas particulares significa que a escola pública não funciona e, portanto, temos de dar condições a elas.
Publicado originalmente no Rural Semanal 11/2019