Adaptação da espécie na costa sudeste do Brasil pode representar risco para o ecossistema de restinga
Popularmente conhecida como rabo-de-calango, a espécie Kallstroemia tribuloides é uma planta típica da Caatinga brasileira, adaptada a ambientes ensolarados e com preferência por solos arenosos. Anteriormente, o único registro documentado da espécie no estado do Rio de Janeiro foi em 1877, na Quinta da Boa Vista, pelo botânico Auguste François Marie Glaziou. Mas, uma visita do biólogo e professor do Colégio Técnico da Universidade Federal Rural do Rio Janeiro (CTUR), Alex Braz Iacone Santos, aos seus pais, em Saquarema (RJ), levou à redescoberta da planta no estado do RJ após 146 anos.
“Eu estava passando uns dias na casa dos meus pais quando avistei a planta, até então desconhecida. Como já estava habituado com as espécies da região, logo a vontade de identificar aquela nova ocorrência foi despertada. Inicialmente, realizei buscas em aplicativos específicos, que auxiliam na identificação de componentes da biodiversidade, como o iNaturalist e o PlantNet, que não foram eficientes na determinação da espécie. Isso aguçou ainda mais a minha curiosidade”, detalha Alex, que cursou a graduação em Ciências Biológicas na UFRRJ. Após uma busca na literatura acadêmica, o docente constatou que a planta em questão era representante do gênero Kallstroemia.
A partir de então, Alex recorreu ao técnico do Herbário RBR do Departamento de Botânica da UFRRJ, Thiago de Azevedo Amorim, que orientou a realização da coleta de algumas amostras e depósito no Herbário RBR para a confirmação da espécie e registro oficial. “O levantamento sobre os registros de ocorrência da planta no Brasil foi facilitado graças aos acervos on-line de herbários de todo o mundo”, explica Thiago, que complementa: “A amostra coletada por Glaziou na Quinta da Boa Vista, por exemplo, está no Herbário do Museu Nacional de História Natural de Paris”.
Assim, no Herbário RBR, foi confirmado se tratar da Kallstroemia tribuloides. Em termos de morfologia, trata-se de uma erva prostrada, ou seja, cresce paralela ao chão, formando uma ampla vegetação rasteira. “Seus ramos são dicotômicos, quer dizer, se dividem de dois em dois. As folhas são compostas e opostas. Suas flores possuem cinco pétalas normalmente amareladas e dez estames de cor alaranjada, que são as estruturas reprodutivas masculinas que guardam o pólen”, descreve Thiago Amorim, também licenciado e bacharel em Ciências Biológicas pela UFRRJ.
A Caatinga é o bioma predominante no Nordeste e apresenta uma flora diversificada, com mais de seis mil espécies registradas, de acordo com o Herbário Virtual Reflora. A Kallstroemia tribuloides, apesar de não ser uma planta exclusiva do Brasil, é considerada nativa e tem sua ocorrência natural reportada para o bioma em questão. Por isso, a surpresa dos pesquisadores ao identificá-la, em março de 2023, em áreas de revitalização de calçadas e na faixa de areia da praia no bairro de Boqueirão, em Saquarema (RJ), cujo território abrange áreas remanescentes de Mata Atlântica e ecossistemas associados às baixadas litorâneas, como as restingas.
Os pesquisadores explicam que a inserção da K. tribuloides pode ter ocorrido no novo ambiente de maneira acidental. Além disso, as recentes obras de drenagem, asfaltamento e pavimentação executadas na região podem ter contribuído para facilitar a entrada da espécie. “Os espécimes foram detectados, predominantemente, em canteiros urbanos recém-impactados. Mas, de forma agravante, também localizamos a planta em duas localidades ao longo da faixa de restinga da orla de Saquarema”, relata Alex Santos.
Outra questão associada é o impacto das mudanças climáticas no processo de adaptação da vegetação fora de seu bioma natural. De acordo com Thiago Amorim, espécies que ocorrem naturalmente em ambientes xéricos, como é o caso de Kallstroemia tribuloides, podem experimentar uma expansão da sua área de ocorrência, pois a mudança das condições climáticas facilitaria o seu estabelecimento em novas áreas. Representante da família Zygophyllaceae, a espécie compartilha adaptações morfológicas, anatômicas e fisiológicas para situações de déficit hídrico e ambientes extremos, marcados por seca, insolação e altas temperaturas.
Os pesquisadores enfatizam que a maioria dos painéis que tratam das mudanças climáticas apontam no sentido de eventos climáticos mais extremos, além de temperaturas mais altas e maior aridez de modo geral. “Assim, é esperado que esses eventos possam afetar negativamente populações vegetais nativas, adaptadas a uma condição ambiental pretérita”, explica Thiago Amorim. Nesse cenário, os pesquisadores alertam que o potencial bioinvasor da Kallstroemia tribuloides para a restinga não deve ser negligenciado e merece mais investigações.
“Acreditamos que devido ao fato dessa planta possuir um conjunto de características que a permite colonizar, se manter e se reproduzir em ambientes de clima xérico, como é o caso da Caatinga, a chegada da espécie aos ambientes de restinga, em especial da Região dos Lagos do Rio de Janeiro que possui uma série de semelhanças climáticas e ambientais com a Caatinga, pode significar um alerta para o início de um processo de invasão biológica”, detalham.
A invasão biológica é considerada uma das principais ameaças à biodiversidade, pois pode levar à extinção de espécies nativas. Contudo, os pesquisadores reiteram que é necessária uma investigação criteriosa para confirmar, ou não, o potencial bioinvasor da K. tribuloides. “Nosso estudo foi um pontapé inicial. Acreditamos que um monitoramento da espécie seja indicado inicialmente para mapear a ocorrência dela para além dos registros reportados em nosso trabalho. Após a detecção de possíveis novos registros, é importante que sejam conduzidos estudos sobre a estrutura populacional, etapa de suma importância para definir de fato se a planta é ou não invasora”, explicam.
Caso seja necessário, após a comprovação da invasão biológica, os órgãos ambientais poderão estabelecer medidas de controle para a K. tribuloides, com ferramentas adequadas para controlar sua disseminação, principalmente nas áreas de restinga da costa sudeste brasileira.
Você já encontrou essa espécie aqui pelo Rio de Janeiro? Envie o seu relato para iacone@ufrrj.br ou thiagodb@ufrrj.br.
Para incentivar a participação popular, os pesquisadores divulgaram uma nota técnica, em português, sobre o ocorrido: Nova ocorrência de Kallstroemia tribuloides (Mart.) Steud. (Zygophyllaceae) no estado Rio de Janeiro, Brasil – uma invasão biológica em curso?
Artigo científico:
AMORIM, T. DE A.; SANTOS, A. B. I. New records of Kallstroemia tribuloides (Mart.) Steud. (Zygophyllaceae) in Rio de Janeiro state, Brazil, after 136 years: a bioinvasion in progress? Check List, 2023. https://doi.org/10.15560/19.4.555
Por Michelle Carneiro, jornalista da CCS/UFRRJ.