As leishmanioses são doenças infecciosas causadas por protozoários do gênero Leishmania que, de modo geral, dividem-se em tegumentar americana, quando acometem a pele e as mucosas, e em visceral (ou calazar), quando afetam órgãos internos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil registra a maioria dos casos da doença em todo o mundo.
As espécies de Leishmania são parasitos mantidos na natureza por flebotomíneos – pequenos insetos conhecidos por diversos nomes, como mosquito-palha, tatuquira, cangalhinha e birigui – e por uma grande diversidade de hospedeiros vertebrados chamados de reservatórios. Mamíferos silvestres como gambá, tamanduá e preguiça, além de cães domésticos e cavalos, podem ser reservatórios importantes. Os protozoários são transmitidos por fêmeas de flebotomíneos infectadas durante a ingestão de sangue.
“Primariamente, as leishmanioses são uma infecção zoonótica, afetando outros animais que não o ser humano, o qual pode ser envolvido secundariamente. Em resumo, o modo de transmissão é por meio de insetos transmissores infectados. Não há transmissão de pessoa a pessoa”, explica Thaysa Vianna, enfermeira da Divisão de Saúde da UFRRJ.
Anteriormente predominante em áreas silvestres, as leishmanioses têm encontrado nas periferias condições propícias para avançar. O município de Seropédica é um dos atingidos, o que despertou o interesse da técnica-administrativa em educação da UFRRJ, lotada na secretaria do Instituto de Veterinária (IV), Fernanda Karla Bezerra da Silva, em investigar a doença sob a ótica da Geografia da Saúde, área que estuda as relações espaciais que se estabelecem entre as condições de saúde e bem-estar das populações e os determinantes sociais e ambientais. “Ao espacializar uma determinada doença, podemos analisar a questão ambiental, social, econômica, ações do poder público e relações da população local”, diz.
No mestrado do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGEO/UFRRJ), sob orientação do professor Heitor Soares de Farias e coorientação de Isabele da Costa Angelo, Fernanda buscou identificar os espaços de risco sob ameaça de ocorrência de leishmaniose tegumentar americana no município de Seropédica, isto é, identificar as áreas que apresentam características ambientais e sociais para a infecção por Leishmania, além de comparar a quantidade de casos entre os municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. De acordo com a pesquisadora, os dados do acumulado no período de 2001 a 2019, disponíveis no DATASUS, indicam que Paracambi e Seropédica apresentaram a maior taxa de prevalência da doença em comparação aos demais.
“Por taxa de prevalência entende-se o número de casos existentes (novos e antigos) em relação à população exposta ao risco. O município do Rio de Janeiro tem um número maior de casos (664), seguido por Nova Iguaçu (80), entretanto, ao levar em consideração a população para o cálculo da taxa de prevalência, tendo como base 100 mil habitantes, despontam Paracambi e Seropédica”, explica Fernanda.
É importante considerar que pode existir subnotificação de casos em humanos e, principalmente, em animais.
A pesquisadora também realizou um trabalho de campo em Seropédica, nas localidades de São Miguel, Santa Sofia e Campo Lindo, que registraram casos da doença, a fim de identificar características socioespaciais destes locais. “Seropédica ainda é um município bastante rural, com grandes áreas de vegetação e matéria orgânica em decomposição, ideal para o desenvolvimento do vetor. Muitas áreas com criação de animais, principalmente galinheiros, servem de fonte de alimentação para as fêmeas dos flebotomíneos”, explica.
Além disso, a pesquisadora chama atenção para o desmatamento de áreas verdes devido à construção de residências e para a necessidade de saneamento básico adequado. “Em alguns pontos dos bairros mais afastados não tem uma coleta de lixo frequente além da exploração das pedreiras, areais e centro de tratamento de resíduos que interferem muito no meio ambiente”, ressalta. O estudo demonstrou que um espaço de alta vulnerabilidade, bem como a presença dos elementos biológicos necessários ao ciclo de transmissão, colaboram para o desenvolvimento da doença.
Mais detalhes sobre a pesquisa estão disponíveis no artigo Espaços de Risco: Um olhar sobre a vulnerabilidade socioespacial.
Uma abordagem mais eficiente para o controle das leishmanioses e de outras zoonoses vem dos estudos de Saúde Única, do inglês One Health, que consideram a integração entre saúde animal, humana e ambiental. “Qualquer alteração nestas relações provocará desequilíbrios e, consequentemente, a propagação de agentes patogênicos. A OMS ressalta que Saúde Única é uma abordagem para planejar e implementar programas, políticas, legislação e pesquisa em que vários setores se comunicam e trabalham juntos para alcançar melhores resultados para a saúde pública”, explica Tiago Marques dos Santos, professor do Departamento de Epidemiologia e Saúde Pública do Instituto de Veterinária (IV) e atual coordenador do Grupo de Estudos e Ações em Saúde Única (GEASU) da UFRRJ.
O docente destaca que as medidas de controle das leishmanioses devem considerar os aspectos epidemiológicos e os que se relacionam aos insetos, chamados de aspectos entomológicos. “As estratégias de controle ainda são pouco efetivas, estando centradas no diagnóstico e tratamento precoces dos casos humanos, redução da população de flebotomíneos, eliminação dos reservatórios e atividades de educação em saúde. Vale destacar que as ações voltadas para o diagnóstico e tratamento dos casos e as atividades educativas devem ser priorizadas em todas as situações”, explica.
Diante deste desafio, as ações educativas de promoção da saúde e prevenção das leishmanioses são fundamentais, o que inclui a participação dos órgãos públicos municipais, estaduais e federais, inclusive das instituições de ensino. “Para o combate às leishmanioses os governos precisam desenvolver políticas públicas adequadas às realidades epidemiológicas de cada município, aliadas à participação efetiva da população com foco na educação em saúde para prevenção e controle dessas doenças. Para isso, é importante que haja investimentos em pesquisas, principalmente no que diz respeito à vigilância entomológica e de casos suspeitos de leishmanioses nos animais, o que permitiria a identificação das áreas de maior risco para o ser humano e consequentemente, seria possível priorizar as ações de controle e saneamento do ambiente, reduzindo assim, a ocorrência de casos de leishmaniose em humanos”, afirma Tiago.
Na Rural, o GEASU desenvolve, desde 2007, ações para o controle de doenças, com destaque às zoonoses e agravos de importância para a saúde humana no âmbito do câmpus universitário e da comunidade de Seropédica. O Grupo é composto por docentes e discentes dos cursos de graduação em Medicina Veterinária, Farmácia, Educação Física e Ciências Biológicas da UFRRJ e objetiva promover a discussão de temas e o desenvolvimento de ações de extensão universitária que envolvam o conceito de Saúde Única, contribuindo para o desenvolvimento de ações de saúde que integrem a Universidade às comunidades locais, permitindo a produção de conhecimento acadêmico, a prática de discentes e a educação popular em saúde.
Na galeria a seguir, é possível conferir divulgação feita por ocasião da Semana Nacional de Controle e Combate à Leishmaniose, em agosto deste ano:
“Planejamos novas ações de extensão voltadas ao uso racional de medicamentos em humanos e animais, aos riscos da interação do ser humano com animais silvestres e a difusão do conhecimento sobre a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) como política pública de saúde no Brasil”, conclui Tiago.
É possível acompanhar as ações do GEASU nas mídias sociais: Instagram, Facebook e YouTube. Caso queira falar com o Grupo, envie um e-mail para geasuufrrj@gmail.com
A leishmaniose tegumentar têm sintomas variados que podem ser confundidos com aqueles causados por outras doenças. Por isso, é muito importante consultar uma equipe de saúde para confirmação do diagnóstico. A Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) conversou sobre o tema com a enfermeira Thaysa Vianna, mestre em Educação em Saúde e servidora da Divisão de Saúde da UFRRJ. Confira a seguir:
Quais os principais sintomas da leishmaniose tegumentar (LT)?
Os sintomas são lesões na pele e/ou mucosas. As lesões de pele podem ser única, múltiplas, disseminada ou difusa. Elas apresentam aspecto de úlceras, com bordas elevadas e fundo granuloso, geralmente indolor. As lesões mucosas são mais frequentes no nariz, boca e garganta. Quando atingem o nariz, podem ocorrer: sangramentos, coriza, aparecimento de crostas e feridas. Na garganta, os sintomas são: dor ao engolir, rouquidão e tosse.
Qual a orientação para a a população que apresente sinais e sintomas?
Em caso de sintomas é necessária a avaliação médica para o diagnóstico e início do tratamento. A população deve procurar atendimento na Clínica da Família ou Posto de Saúde mais próximos da residência.
Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico da leishmaniose tegumentar é feito por métodos parasitológicos. Essa confirmação laboratorial é fundamental, tendo em vista o número de doenças que fazem diagnóstico diferencial com a LT – como, por exemplo, sífilis, hanseníase e tuberculose. A utilização de métodos de diagnóstico laboratorial é importante não apenas para a confirmação dos achados clínicos, mas também pode fornecer informações epidemiológicas – por meio da identificação da espécie circulante -, fundamentais para o direcionamento das medidas a serem adotadas para o controle do agravo.
Quais são os tratamentos existentes?
O tratamento é feito através de medicamentos sistêmicos e/ou intralesionais, todos disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Quais as principais formas de prevenir a leishmaniose tegumentar?
As principais formas de prevenir a doença, segundo orientações do Ministério da Saúde, são as seguintes ações direcionadas:
-Atividades de educação em saúde: devem ser inseridas em todos os serviços que desenvolvam as ações de vigilância e controle da LT;
-População humana: adotar medidas de proteção individual, como usar repelentes e evitar a exposição nos horários de atividades do vetor (crepúsculo e noite) em ambientes onde este habitualmente possa ser encontrado;
-Vetor: manejo ambiental, por meio da limpeza de quintais e terrenos, para evitar o estabelecimento de criadouros para larvas do vetor.
Para Cedric Stephan Graebin, professor do Departamento de Química Orgânica da UFRRJ, são diversos os desafios no tratamento de doenças tropicais negligenciadas, como as leishmanioses. Um deles é o pequeno número de fármacos disponíveis: “Para a leishmaniose temos apenas seis, sendo um disponível como comprimidos. Os demais são aplicados por infusão intravenosa”.
Outros pontos destacados pelo docente sobre os fármacos atuais são a incidência considerável de efeitos adversos; o surgimento de cepas de parasitas resistentes a eles; e as complicações no tratamento por causa de outras doenças prévias dos pacientes, como é o caso da leishmaniose em pacientes HIV positivos.
Também há desafios relacionados à emergência climática que está levando ao aumento da temperatura no planeta: “Teremos uma mudança no padrão geográfico da transmissão destas doenças que dependem de insetos como vetores”.
Por fim, o docente menciona a mobilidade de pessoas no globo causadas pelas imigrações: “As doenças tropicais podem ser levadas para outros locais do planeta e/ou causar o ressurgimento das doenças em áreas que eram consideradas livres delas”, conclui.
Manual de vigilância da leishmaniose tegumentar / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. – Brasília: Ministério da Saúde, 2017. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_vigilancia_leishmaniose_tegumentar.pdf
Atlas interativo de leishmaniose nas Américas: aspectos clínicos e diagnósticos diferenciais. Washington, D.C.: Organização Pan-Americana da Saúde; 2021. Licença: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. https://doi.org/10.37774/9789275721902. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/54129
Por Michelle Carneiro, jornalista da CCS/UFRRJ.