A tarde de 18 de setembro de 2025 já entrou para a história da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)… e também para a coleção de histórias do João Carlos Gonçalves. Nascido cinco anos depois que a Universidade Rural se instalou em Seropédica, este filho ilustre da cidade vem brindando o Brasil e o mundo com sua arte, sua música, desde os anos 1970. O João Carlos se transformaria, na década seguinte, no João Fera, tecladista d’Os Paralamas do Sucesso, um dos grupos mais admirados da música brasileira.
Naquela memorável tarde no Auditório Hilton Salles, Pavilhão Central da UFRRJ, Fera lançou sua biografia ao lado do autor do livro, seu filho Raphael Silva Gonçalves. Mais do que um lançamento, foi um show de memórias, sentimentos e carinho mútuo. Não havia instrumentos, mas tudo pareceu soar como uma música cuja letra entrelaçava as histórias da Universidade Rural, dos Paralamas e do sempre seropedicense João Fera.
“João Fera desde 1986: a biografia” (Editora BR75) reúne os relatos que um excelente contador de histórias passou para o filho. Nas palavras de Alê Magalhães (que escreveu a “orelha” do livro), trata-se de uma “cartografia afetiva” construída por Raphael Gonçalves, com “situações, lugares, pessoas e datas”.
Mas os fatos ali narrados extrapolam a faceta mais conhecida do Fera como “o 4º Paralama”. Assim, a fase anterior à banda ocupa as 67 primeiras páginas, mostrando como Seropédica e a UFRRJ marcaram a vida de João e de sua família. E foi justamente este laço que tornou tão especial o lançamento realizado na Universidade.
“Vocês não têm noção do que isso representa para mim. Olhar certas pessoas aqui com as quais convivi nas décadas de 70, 80, 90… Ver os rostos daqueles que frequentavam os bailes no bairro da Ecologia, no centro de Seropédica e no Clube Social. É por isso que eu continuo enraizado aqui”, disse Fera ao público que lotava o Auditório Hilton Salles.
No momento mais emocionante da apresentação, o músico lembrou de sua relação com a Rural – que, desde sua infância, é um dos pontos marcados no mapa-coração de sua “cartografia afetiva”:
“Na época em que minha mãe… Que Deus a tenha!… Ela lavava a roupa dos estudantes da Rural…”
Neste momento, Fera não consegue continuar sua fala. A emoção aflora, e ele chora. A plateia aplaude com reverência.
“Toda segunda-feira, eu e meu irmão vínhamos a pé pegar as roupas dos estudantes aqui no alojamento. Parecíamos duas formiguinhas, carregando as roupas na cabeça; e levávamos para minha mãe. E ela puxando água da caçamba, lavando roupa de segunda a sexta… Depois a gente trazia as roupas todas passadinhas e entregava aqui para os estudantes”, lembrou João Fera, também citando o pai, que atuava como tratador de animais.
“Cara… agora eu estou aqui dentro, lançando um livro, diante de várias pessoas me prestigiando… Isso é muito grande! Está muito além do que vocês possam imaginar”, disse o tecladista, acostumado a rodar o mundo e tocar para multidões.
“Agradeço a cada um de vocês que contribuíram para que esta minha história pudesse ser contada, e que eu pudesse estar aqui presente hoje. Muito obrigado mesmo!”, concluiu Fera, que foi efusivamente aplaudido de pé por quase um minuto.
Em entrevista à Coordenadoria de Comunicação Social (CCS/UFRRJ), Raphael Gonçalves – que além de escritor é músico, como o pai – contou como foi o processo de criação da biografia.
Segundo ele, tudo começou durante a pandemia. Na fase de isolamento, ele, o pai e o irmão – o produtor de eventos Robson Carlos Silva Gonçalves – resolveram fazer “lives” no YouTube “para passar o tempo”. Com o título “‘João Fera conta e toca’”, a ideia era abrir espaço para as memórias do tecladista – as quais Raphael e o irmão estavam acostumados a ouvir em casa, desde quando eram pequenos.
“Eu criei uma pauta cronológica, abordando desde os tempos dos conjuntos de baile em Seropédica, passando pela época em que ele tocou com o Wando e, depois, quando entrou nos Paralamas”, explicou o autor da biografia. “As ‘lives’ ganharam uma repercussão enorme, com as pessoas pedindo mais e mais histórias. Muita gente dizia que esses relatos poderiam virar um livro”.
Raphael disse que sua companheira, a também escritora Alessandra Magalhães, incentivou-o a fazer a biografia. Então, a partir do roteiro criado para as apresentações no YouTube, o filho de Fera elaborou um sumário e foi escrevendo todas as histórias que o pai lhe contava. Depois, foi só conferir os detalhes – um trabalho facilitado pela disciplina e organização do próprio Fera, que criou o costume de anotar os dados de todos os shows e grupos com os quais tocou ao longo de mais de 50 anos de carreira.
Também em entrevista à CCS/UFRRJ, João Fera expressou seu orgulho por ter sido biografado pelo próprio filho:
“É uma das biografias mais fiéis que alguém pode ter. Geralmente é uma pessoa de fora que estuda a vida do cara para poder escrever depois. Mas o Raphael vive comigo; então, sabe exatamente o que aconteceu. Qualquer biografado gostaria de ter um filho escrevendo sua história. E o mais importante: em vida”.
Fera também fez questão de reconhecer publicamente, em sua apresentação, o papel do filho Robson Gonçalves – o Robinho – que, além de contribuir na produção do livro, atua há dez anos a seu lado na equipe de produção dos Paralamas.
Na abertura do lançamento, o reitor Roberto Rodrigues demonstrou sua satisfação pela presença de João Fera – revelando que, como para muitos ali na plateia, a arte do músico deixou marcas em sua própria trajetória pessoal. “Sou da década de 80 e curti muito o disco ‘D’”, disse o reitor, referindo-se ao álbum ao vivo lançado em 1987, contendo a apresentação dos Paralamas no Festival de Montreux, Suíça, já com Fera nos teclados.
Rodrigues enfatizou ainda que o lançamento do livro de um artista nascido em Seropédica reforça o papel da UFRRJ na promoção da cultura da Baixada Fluminense.
Na mesma linha, a pró-reitora de Extensão, Maria Ivone Barbosa, reconheceu a “trajetória de um artista fundamental para a música, para Seropédica e para a Baixada Fluminense”, sublinhando a “força e o talento que brotam de nosso território”.
No final do evento, a chefe do Departamento de Arte e Cultura da Pró-Reitoria de Extensão (Proext), Camila Eller Gomes, fez um anúncio que poderá soar, em breve, como um “bis” muito especial para aquela tarde dedicada ao João Fera:
“Vou dar um ‘spoiler’ aqui: a Proext deu início ao processo para outorga do título de Doutor Honoris Causa para os senhores Felipe de Nóbrega Ribeiro, Herbert Lemos de Souza Vianna, João Alberto Barone Reis e Silva e João Carlos Gonçalves”.
Mais aplausos efusivos por parte da plateia, que naquele momento já contava com a presença de outra personagem especial dessas histórias: a professora aposentada da UFRRJ e ex-diretora do Instituto Três Rios (ITR), Luciana de Amorim Nóbrega – a mãe do Bi Ribeiro.
Assista, abaixo, à gravação do lançamento, realizada pela equipe da CCS/UFRRJ:
Para ler as histórias do João Fera, acompanhadas por muitas fotografias, a biografia está disponível para venda neste link: https://abre.ai/bio-do-fera
Recomendamos ainda esta entrevista que o Fera concedeu ao podcast “Papo com o Clê”: https://www.youtube.com/watch?v=bjzhCxCBuIo
“João Fera é um exemplo raro de persistência intensa, generosidade e sensibilidade ampla em termos de busca. Teve a coragem de enfrentar tudo, as condições sociais, as condições raciais, o plano na estrutura da sociedade onde ele estava e as possibilidades de caminho. Os passos que deu foram muito bem pensados, muito corajosos, muito brilhantes no melhor sentido, então, ele é um ser humano absolutamente admirável”
(Depoimento de Herbert Vianna, incluído na biografia “João Fera desde 1986”)
Reportagem: João Henrique Oliveira (CCS/UFRRJ)
Fotografias: Miriam Braz (CCS/UFRRJ)
Filmagem do evento: Felipe Araújo (CCS/UFRRJ) e Alexander Moreira (Vice-Reitoria)
Agradecimentos a João Fera, Raphael Gonçalves e Robson Gonçalves