Prof. Alexandre Fortes, Departamento de História, IM/UFRRJ
Prof. Leandro Dias de Oliveira, Departamento de Geografia, UFRRJ
A análise dos dados relativos à pandemia de COVID-19 e a construção de cenários estimando os números de infectados e de óbitos têm se revelado tarefas árduas mesmo para os maiores especialistas das mais consagradas instituições de pesquisa em diversas partes do mundo.
Esse problema se apresenta de forma particularmente grave na Baixada Fluminense, que padece historicamente de uma profunda carência de dados e indicadores específicos para subsidiar a formulação de políticas para o enfrentamento da sua dramática realidade social.
Como pesquisadores vinculados a esse contexto regional, entendemos que é nosso dever colaborar no processamento de informações que possam trazer alguma contribuição para a análise de tendências em relação a esse fenômeno de dimensões inéditas.
Mesmo sem experiência prévia ou formação específica na análise de fenômenos epidemiológicos, utilizamos nossa experiência na análise de fontes variadas de informação para contribuir na complexa tarefa de geração de conhecimentos que possam contribuir para a compreensão da profundidade e complexidade dos desafios decorrentes da dimensão inédita da presente pandemia.
No momento que escrevemos, as estatísticas globais registram cerca de um milhão e meio de infectados e quase 88 mil mortes provocadas pela COVID-19. No Brasil, chegamos a quase 16 mil casos e 800 mortos. No estado do Rio de Janeiro, 1.938 casos e 106 mortos.
Na Baixada Fluminense, até o dia 07 de abril, registravam-se 136 casos confirmados e 12 mortes. Esses números, num primeiro momento, podem parecer inexpressivos, mas constituem apenas a ponta de um iceberg que, ao que tudo indica, atingirá a região de forma desastrosa em poucas semanas.
Essa tendência pode ser prevista por vários fatores: 1) A dinâmica da pandemia tem levado, em todo mundo, a uma dificuldade em acompanhar o número de infectados, e até mesmo de óbitos; 2) O Brasil deve presenciar, nas próximas semanas, o crescimento exponencial do número de infectados; 3) A COVID-19 se difundiu no Rio de Janeiro inicialmente entre segmentos com condições mais favoráveis, e tudo indica que ganhará uma dinâmica muito mais agressiva nas periferias urbanas; 4) A alta densidade demográfica, a precariedade das condições de vida e das unidades de saúde, assim como a influência de lideranças negacionistas tendem a agravar o impacto da doença na região.
Examinemos brevemente cada um desses aspectos.
A rápida difusão global da COVID-19 pegou de surpresa mesmo os melhores sistemas de saúde do mundo. Na grande maioria dos países, a escassez de testes seguros disponíveis para aplicação em larga escala gerou estatísticas falhas e incompletas. Matéria recente da revista The Economist aponta que tanto no norte da Itália quanto no centro da Espanha o número de óbitos acima da média histórica durante os momentos de pico da epidemia foi duas a três vezes superior ao de mortes oficialmente associadas ao novo coronavírus. O New York Times prevê que o número real de mortos pela pandemia nos EUA não será conhecido até 2021.
No Brasil, um grupo de especialistas de diversas instituições avalia que o número real de infectados deveria estar na casa dos 82 mil no dia 07 de abril, quando o registro oficial contabilizava cerca de 12 mil. Ou seja, o número real deve ser cerca de sete vezes maior do que indicam as estatísticas. Em São Paulo, o número de enterros realizados nos cemitérios já cresceu numa proporção muito superior à dos casos confirmados de COVID-19.
Esses números, por um lado, podem gerar uma percepção de uma letalidade muito superior à real, já que apenas pacientes graves e mortos são testados. De outro lado, porém, eles indicam que o número de infectados sem sintomas ou com sintomas leve em circulação é muito mais alto do que se supõe, o que torna provável uma explosão de casos em breve, como indica a figura abaixo, gerada pelo Painel Coronavírus Brasil.
O conjunto de fatores comentados acima fundamenta a hipótese de que o Brasil deve se defrontar em breve com um salto que hoje parece quase inimaginável na dimensão do problema. Instituições especializadas trabalham com projeções que estabelecem como cenário mais otimista um número total de 200 mil mortos no país, chegando, num cenário pessimista, a 2 milhões de óbitos.
A instalação da pandemia como um fenômeno de massas na Baixada e nas demais áreas periféricas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, entretanto, vem sendo em certa medida retardada pelas características da difusão da doença no estado. Tudo indica que o principal vetor da introdução do vírus no Rio de Janeiro foi a elite globalizada (pessoas que viajam ao exterior ou tem contato com quem viaja), à qual se somaram, possivelmente, grupos de turistas em visita à capital. Isso explica por que os casos se concentram inicialmente em locais turísticos e de renda elevada.
Essa característica socioeconômica da primeira fase da instalação da pandemia no estado pode ser percebida até mesmo na disparidade dos dados sobre os diferentes bairros da capital. No dia 07 de abril, a Barra, com 650 mil habitantes, tinha 102 casos confirmados. Já Campo Grande e Bangu, que somados, tem quase a mesma população, registravam apenas 10 casos. Leblon, Copacabana, Ipanema, Botafogo, Lagoa, Tijuca, Centro, Flamengo e São Conrado, vários deles com populações relativamente pequenas, completavam a lista dos dez bairros que mais concentravam casos e óbitos.
Esses bairros de classe média alta certamente oferecem melhores condições para isolamento social e maior acesso à rede de saúde. A notificação tende a ser mais alta, mas a curva vai achatar mais rapidamente e o tratamento dos casos graves será melhor, até porque estão chegando mais cedo a bons hospitais e às UTIs. Nas próximas semanas, ao que tudo indica, a epidemia vai explodir nas favelas, assim como nas partes mais pobres das Zonas Norte e Oeste e na Baixada, com taxas de transmissão muito mais aceleradas e letalidade muito mais alta.
A dinâmica da pandemia em contextos de extrema desigualdade social e precariedade de condições de vida ainda não é conhecida, mas tudo indica que será avassaladora. Nos Estados Unidos, os dados já demonstram que a doença atinge de forma desproporcionalmente alta e de maneira muito mais agressiva a população afroamericana, cuja vulnerabilidade no que diz respeito a saúde, ocupação, renda, habitação e saneamento predispõe ao contágio e ao agravamento do quadro. O portal UOL, em matéria recente, alerta para a combinação explosiva entre a persistência ou ressurgência de doenças negligenciadas como a Tuberculose e a COVID-19 em favelas cariocas. A realidade da Baixada certamente não é diferente.
Entretanto, a população e muitas das lideranças sociais, políticas e religiosas locais parecem não compreender a gravidade da situação. Apesar da estrutura de atendimento em saúde da região estar completamente desaparelhadas para enfrentar um tsunami como o que se aproxima, os relatos indicam a persistência de atividades frontalmente contrárias a qualquer diretriz visando reduzir o potencial de multiplicação do número de infectados.
É fundamental que todos atores sociais com melhor acesso a informações científicas consistentes e confiáveis contribuam para alertar a população e as autoridades sobre os riscos que se abatem sobre o Brasil em geral e sobre a Baixada Fluminense em particular.
À medida que mais dados sobre a evolução da situação forem sendo disponibilizadas, este blog será atualizado com postagens selecionando e analisando as informações relevantes sobre a pandemia em escala global, nacional e local.