A trajetória política e pessoal de Benedita da Silva traz as marcas do pioneirismo e da quebra de tabus. Nascida numa favela carioca, ela foi a primeira mulher negra a ser eleita vereadora, deputada federal Constituinte e senadora da República. Tendo iniciado sua atuação política como líder comunitária, Bené (como ficou conhecida nacionalmente) galgou postos até então inalcançáveis ao povo preto brasileiro. Sua atuação parlamentar foi pautada pela defesa da democracia, da classe trabalhadora e da soberania nacional; mas o combate ao racismo foi (e continua sendo) uma de suas bandeiras mais presentes. O estabelecimento do 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra e a inclusão de Zumbi dos Palmares no Panteão dos Heróis e Heroínas Nacionais são dois exemplos de conquistas antirracistas de Benedita, fruto de seu trabalho no Congresso Nacional.
Agora, Benedita vai acrescentar mais um feito à sua biografia: na próxima segunda-feira, dia 26 de agosto vai receber o título de Doutora Honoris Causa da UFRRJ. Com isso, a Rural quebrará igualmente um tabu: de acordo com a lista de doutores honoris causa publicada pela Secretaria dos Órgãos Colegiados, Benedita da Silva será a primeira mulher negra a receber a honraria máxima de nossa instituição.
Filha de José Tobias de Sousa, pedreiro, e de Maria da Conceição de Sousa, lavadeira, Benedita Sousa da Silva nasceu em 1942 na favela da praia do Pinto, bairro do Leblon, Rio de Janeiro. Ainda criança, mudou-se com a família para o morro do Chapéu Mangueira, no Leme. Ela e os 14 irmãos tiveram uma vida que não difere daquela dos tantos milhões de pretos, pobres e periféricos deste país. Para ajudar em casa, ela parou de estudar e começou a trabalhar bem cedo. Nesses seus primeiros passos no mundo, Benedita foi vendedora ambulante, empregada doméstica, operária fabril, professora de escola comunitária…
Bené casou bem cedo, aos 16 anos, com Nílton Aldano, com quem teve quatro filhos – dois dos quais morreram ainda recém-nascidos. Ficou viúva em 1981, casando-se pela segunda vez dois anos depois com o líder comunitário Aguinaldo Bezerra dos Santos. Mais uma vez viúva em 1988, casou-se em 1993 com o ator Antônio Pitanga, com quem vive até hoje.
Apesar da vida difícil, Benedita buscou conciliar o trabalho com o estudo. Atuou como faxineira enquanto estudava no colegial (na época, uma das etapas do ensino secundário). Qualificou-se como auxiliar de enfermagem e conseguiu trabalhar em um hospital. Em 1982, já com 40 anos, graduou-se em Serviço Social.
Ao lado das privações econômicas e perdas familiares, Benedita conheceu, ainda bem pequena, a face da violência. Em perfil escrito pela jornalista Juliana Dal Piva, em 2020, ela deu um depoimento forte sobre esse episódio:
“Aprendi a me defender depois de ser estuprada, aos 7 anos. É um assunto que não gosto de tocar, mas ali vi que não existe justiça para a menina pobre. Me descobri mulher. Tive que lutar para não odiar os homens. Tive que lutar para não odiar a minha cor e o fato de ser negra”.
‘Negra, mulher e favelada’
A militância começou na favela. Em 1976, Benedita da Silva foi eleita presidente da Associação de Moradores do Morro do Chapéu Mangueira. Numa década sob a sombra da ditadura, mas fervilhando de movimentos sociais nascentes (e resistentes), ela se alinharia tanto ao movimento negro quanto ao feminismo. Assim, fundou o departamento feminino da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj) e o Centro de Mulheres de Favelas e Periferia (Cemuf).
Saída do morro para as massas, Benedita figura entre os fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980. Foi a partir desta agremiação que ela quebraria o primeiro tabu: em 1982, tornou-se a primeira vereadora negra da cidade do Rio – “negra, mulher e favelada”, como dizia seu slogan de campanha.
Em 1986, mais um feito histórico: elegeu-se deputada federal, também pelo PT, tomando posse no ano seguinte, quando se iniciaram os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Era a única negra entre os deputados, assumindo a titularidade da Subcomissão de Negros, Populações Indígenas e Minorias, além da suplência na mesa diretora da Constituinte, na Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais e na Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher.
Na Constituinte, tomou parte da elaboração de artigos referentes à demarcação das terras indígenas, à regulamentação da propriedade da terra nas comunidades remanescentes de quilombos e aos direitos trabalhistas de empregadas domésticas. Ainda se colocou a favor do rompimento das relações diplomáticas do Brasil com países que desenvolvessem políticas oficiais de discriminação racial (clique aqui para ler o discurso dela sobre esse tema).
O papel de Benedita na Assembleia Constituinte foi abordado no vídeo “Testemunha da História”, produzido pela TV Senado. Assista no link abaixo:
Depois da atuação como deputada constituinte, Benedita trilharia uma bem-sucedida carreira política, tendo sido eleita para quatro mandatos de deputada federal – o último deles vigente desde a eleição de 2022, quando foi reeleita com 113.831 votos. Também já foi senadora (1995-1999); vice-governadora (1999-2002) e governadora (2002-2003) do Rio de Janeiro; e ministra da Assistência e Promoção Social (2003-2004).
Além das propostas do Dia Nacional da Consciência Negra e da inclusão de Zumbi como herói nacional, foi relatora da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Domésticas, que ampliou os direitos trabalhistas para estas profissionais; apresentou projeto de lei (n. 3.903 de 1989) que culminou na Regulamentação da profissão de Assistente Social (Lei nº 8.662 de 1993) ; e, durante a pandemia, foi autora da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, com ações destinadas ao setor cultural.
A história da homenagem
A proposta de homenagear Benedita da Silva na UFRRJ partiu do técnico-administrativo Maurício de Oliveira Marins, lotado no Instituto de Tecnologia (IT). Marins conta que já tinha uma “admiração incondicional” pela deputada, especialmente “por suas lutas pelas causas sociais e defesa das mulheres – principalmente as negras”. Ressaltando ainda o apoio que a parlamentar dá para a Universidade, por meio de emendas, Marins propôs a ideia ao Conselho Universitário (Consu), que a aprovou por aclamação.
“Benedita é um marco da resistência do povo negro”, disse o servidor. “Somos a maior população segundo o IBGE; somos os que mais sofrem com a violência; sofremos racismo direto e indiretamente; infelizmente, também somos a maior população carcerária do país. Ver Benedita da Silva receber um título como esse mostra para nós, negros e negras, que podemos, sim, romper essa bolha que nos impede de irmos adiante. Bené é um exemplo a ser seguido”, completou Marins.
Para o reitor Roberto Rodrigues, a deputada é um exemplo para as alunas e alunos da UFRRJ em três campos fundamentais: o educacional, o social e o humano.
“Como pessoa negra, pobre e nascida em favela, Benedita venceu na educação ao fazer curso técnico e, depois, se formar na universidade. Socialmente, conquistou um protagonismo político admirável. Por fim, seu exemplo humano fica evidente por ter superado diversos preconceitos”, disse o reitor. “Assim, todas essas qualidades ressaltam a figura de uma pessoa que resiste. E isso se relaciona muito ao perfil de nossos estudantes – vindos de escola pública, de baixa renda, muitos deles pretos e pretas – que precisam resistir para permanecer e se formar. Benedita é uma referência para nossa Universidade porque, em seu tempo, ela resistiu e construiu sua história pública”.
A cerimônia de entrega do título de ‘Doutor Honoris Causa’ à Benedita da Silva vai acontecer na próxima segunda-feira, 26 de agosto, às 14h, no Auditório Gustavo Dutra (Pavilhão Central), câmpus Seropédica.
Assista ao vivo no link abaixo:
Por João Henrique Oliveira (CCS/