Para a eternidade de cada dia
Marcos Estevão Gomes Pasche – Professor de Literatura Brasileira (DLC/ICHS)
O setor de Comunicação da Universidade me pediu uma pequena lista com sugestões de leituras a quem se recolhe neste período de quarentena geral. Bastavam três títulos, e para mostrar como pode ser temerário puxar esse tipo de conversa com alguém de literatura, deixo aqui a recomendação de dez livros. Pretendendo alguma variedade, não listei apenas textos literários; parti de assuntos que notei mais disseminados nas últimas semanas; e incluí no rol uma ou outra preferência minha.
A velocidade e o alcance da contaminação causam perplexidade e demandam entendimento. Enquanto ainda não chegam certas respostas da ciência, latejam questões antecipadas pelo imaginário. Nesse sentido, Ensaio sobre a cegueira, do português José Saramago, é o mais impactante romance que conheço. Narrado em linguagem densa e dinâmica, um surto de cegueira branca instaura caos social e escancara contradições e misérias da condição humana. Na trama, apenas uma mulher é imune ao mal, e em sua figura a humanidade resiste e reverte quadros extremos – com força, inteligência e altruísmo. Nos ares daqueles episódios pairam perguntas pertinentes ao calor desta hora: abandonada a escuridão da caverna, que tipo de clareza obstrui a percepção? Como será o depois de um agora avassalador? Qual papel cabe a quem vê em meio à cegueira geral?
O drama agudo de países como Itália e Espanha faz pensar em prenúncios do fim do mundo, algo propício para a evocação de textos arcaicos, como o bíblico Apocalipse, que nos chega em recente versão pelo também luso Frederico Lourenço. Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Lourenço tem traduzido toda a Bíblia diretamente do grego, adensando a edição com explicações e referências de origens e controvérsias que cercam as escrituras bíblicas (incluindo aí a autoria de Apocalipse). Já saíram três dos seis volumes previstos, estando o texto em questão no segundo – Novo Testamento: Apóstolos, Epístolas, Apocalipse. Embora esta lista vá sair num periódico acadêmico, cabe frisar que recomendo o livro por razões culturais e por seu teor mitopoético.
Conforme avança a pandemia no Brasil, aumenta a vulnerabilidade de grupos já historicamente tornados vulneráveis, como os povos originários, por exemplo, atacados por pólvoras e pestes. Um livro bastante oportuno sobre o fenômeno é Doenças e curas: o Brasil nos primeiros séculos, da médica e pesquisadora Cristina Gurgel. O trabalho explora o efeito arrasador de surtos de doenças trazidas por colonizadores para a “nova terra” e estuda convergências de práticas medicamentosas de europeus e autóctones. Falar dos povos ancestrais é apontar os males que sofreram e sofrem, mas também é aproximar-se de como conhecem, amam e se integram à grande casa. Da colonização resultou contra os indígenas uma epidemia alienante e ainda hoje vigente, pelo que é imprescindível ler as palavras proféticas de aniquilação e as de urgentes alternativas em A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, e em Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak.
No debate político travado em torno das consequências sociais da pandemia, uma percepção assevera que a crise social decorrente de alterações do padrão econômico será mais acentuada para negros e mulheres. Assim, sugiro com ênfase o romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, colossal estória prenhe de histórias de feminilidade e negritude ancestrais que atravessam espaços e tempos, passando por momentos decisivos da formação do Brasil e chegando a ecoar no samba com que a Mangueira se sagrou campeã do Carnaval de 2019!
Em março passado, uma fuga em massa de uma cadeia paulista evidenciou outro grupo fundamente fragilizado – o das pessoas privadas de liberdade. Um escrito excepcional em torno do tema carcerário é Prisioneiras, com que Drauzio Varella conclui a trilogia sobre sua atuação voluntária ao longo de três décadas em unidades prisionais de São Paulo. Conjuntando conhecimento científico e escrita refinada, contundência e humanidade, os relatos demonstram que o universo prisional, tão referido pela precariedade, é mais degradante para mulheres. Em passagens minoritárias porém expressivas, o livro ainda mostra pessoas com histórico de situação de rua, dado o fluxo contínuo e circular de mulheres que saem de redutos de consumo de crack para a cadeia, para eles voltando imediatamente ao fim do cumprimento de suas penas.
A pandemia impõe discutir a distribuição de recursos com vistas à preservação de pessoas e da economia. Confirmando o apego secular das elites brasileiras a seus privilégios (que contemporaneamente se desdobra na ânsia agressiva de exaurir investimentos ao serviço público), o Governo Federal e setores do Congresso Nacional só admitem soluções que passem pela redução de salários e pela distribuição de pífios valores assistenciais. Uma obra importantíssima para se dimensionar a concentração de renda made in Brazil, intocada pelas mais disseminadas propostas de equilíbrio econômico geral, é Os donos do capital: a trajetória das principais famílias empresariais do capitalismo brasileiro, organizada por Rafael Vaz da Motta Brandão e por Pedro Henrique Pedreira Campos – este, inclusive, professor da UFRRJ.
Hoje entendemos física e radicalmente que a vida é um sopro. Quando as notícias nos entopem de pavor e cansaço, o espírito clama por evasão e suavidade. A poesia então se apresenta. Transfigurada e transfiguradora, ela nega os enganos do mundo e desconfia das convenções, mas sem veicular previsíveis promessas de êxito e felicidade. 2020 marca o centenário de João Cabral de Melo Neto, poeta “contra a poesia dita profunda”, pelo que se aguarda o lançamento da já pronta nova edição de sua obra completa – organizada pelo professor, crítico literário e poeta Antonio Carlos Secchin, com colaboração da pesquisadora Edineia Rodrigues Ribeiro. De João Cabral recomendo A educação pela pedra, livro maior entre livros maiores, em que a poesia é palavra de disciplina e exatidão, pedagogia para o sentir e o dizer.
Por fim, e por princípio, falo da leitura como encontro – com o outro, com as coisas e consigo. Dentre os grupos em maior fragilidade pela pandemia está o dos idosos, tantos dos quais sentem a angústia do isolamento extremo e da distância de crianças queridas. O menino do olho d’água, de José Paulo Paes, é um livro da comunhão – do verso e da prosa, da infância e da maturidade, da humano e do natural – e em suas páginas correm motivos para avivar a memória de abraços passados e desejar que haja vida para realizar os e se realizar nos abraços futuros.
Aí ficam as sugestões. Livros não desinfectam corpos ou ambientes, tampouco distribuem saneamento e comida. Só que eles, intrometidos e teimosos, podem ser imersão e emersão, vias tão opostas quanto complementares para nos mantermos lúcidos, solidários e sonhadores. Não é pouco, principalmente se considerarmos a letalidade da pandemia e a do pandemônio oficial que, no lugar da ciência e da vida, escolhe, pois, a cifra e o vírus.
Referências (seguindo a ordem de menções no texto)
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
BÍBLIA (volume II): Novo Testamento: Apóstolos, Epístolas, Apocalipse. Tradução do grego, apresentação e notas de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
GURGEL, Cristina. Doenças e curas: o Brasil nos primeiros séculos
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2013.
VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta (orgs). Os donos do capital: a trajetória das principais famílias empresariais do capitalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Autografia, 2017.
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
PAES, José Paulo. O menino de olho d’água. 5ª ed. Ilustrações de Rubens Matuck. São Paulo: Ática, 2008.