Aristóteles Berino (*)
Nosso modo de funcionamento entrou em crise, é o que diz Ailton Krenak (2020, p. 81) quando constata que a pandemia nos pegou em cheio. Existir em sociedades que convergem para a globalização neoliberal é naufragar no capitalismo avançado, quando a lógica da acumulação de capital se espalha por todo o planeta e por toda a fruição humana. A história do capitalismo nos trouxe até aqui, não há mais nada que não passe por suas vísceras. O resultado é o permanente estado de vulnerabilidade e escassez em que vive uma maioria marginalizada nesse processo: as classes populares, os excluídos e os povos originários. No entanto, no limite é uma crise geral da civilização moderna, a ruína da própria concepção burguesa de mundo. O problema da percepção da crise é que ela foi normalizada.
Apesar do estado crítico em que já vivíamos, as coisas pareciam aceitáveis ou normais até um certo ponto. Seguindo a advertência de Ailton Krenak, o que estamos vivendo com a pandemia é um grave sinal de que não era normal o nosso modo de funcionamento e precisamos nos posicionar sobre isso agora, caso contrário tudo vai piorar irresistivelmente. O discurso do poder é de uma recuperação, é claro. Por isso um “novo normal” (BERINO; CABRAL, on-line/a), depois do susto da emergência epidemiológica. A postura é de aniquilação porque a lógica da acumulação capitalista não é reflexiva sobre a própria condição existencial. Remeto a três obras que poderiam nos ajudar nessa reflexão: A terra inabitável (WALLACE-WELLS, 2019), Capitalismo e colapso ambiental (MARQUES, 2018) e A nova razão do mundo (DARDOT; LAVAL, 2016).
E a educação com isso? Quando Ailton Krenak diz, “o mundo não pode parar. E o mundo parou”, ainda que isso deva ser entendido de modo relativo (OLIVEIRA, on-line), penso especialmente na educação. A quarentena interrompeu as escolas. Acompanhando a intensa desigualdade provocada pela forma como se alicerça a sociedade capitalista no Brasil, a situação da paralisação das escolas ocorre de modo bastante desigual também. Nas instituições privadas, em muitas delas, na segunda semana da quarentena as aulas presenciais já tinham sido substituídas por encontros remotos, síncronos e assíncronos, com o semestre seguindo praticamente o calendário já estabelecido no início do ano letivo. Nas grandes redes públicas, as classes populares foram as mais vitimadas porque não possuem as mesmas condições para o ensino remoto.
Nas universidades públicas, de um modo geral, a retomada aconteceu bem mais adiante, depois de um período de maior avaliação e discussão sobre os rumos da pandemia e as alternativas existentes. Aqui, na UFRRJ, um período chamado de Ensino Continuado Emergencial prosseguiu de modo remoto as aulas, a partir de setembro. Desde março, quando o distanciamento social foi adotado, através de uma quarentena com fases distintas de severidade, variável nas cidades e de acordo com tempo diverso da pandemia em todo o país, o magistério vive com ansiedade diante das muitas realidades em que está submetido nas diferentes redes de ensino e graus da educação. O assédio profissional (NAPOLITANO, on-line), a precariedade (CRUVINEL; KLINKE, on-line) e até o desemprego (MENDONÇA, on-line) são uma realidade presente para muitos professores e professoras, aumentando ainda mais o sofrimento imposto pela própria pandemia.
Estamos no mês de outubro e muitas redes públicas e privadas na educação básica, em todo o país, de acordo com os contextos locais, estabelecem um calendário para uma volta às aulas presenciais, de modo gradual, mas ainda adotando o ensino remoto de modo associado. Ainda não temos uma vacina nem tratamento para a Covid-19. A insegurança é grande (ALTINO; PORCIDONIO, on-line) e ainda me parece prudente observar que não temos certezas a respeito do próximo ano letivo, como poderá ocorrer, afinal a pandemia não acabou e ainda não sabemos como tudo deverá seguir, inclusive sobre os resultados de uma vacinação próxima (JANSEM, on-line). Na universidade, sobre a situação de emergência epidemiológica, também não escapamos das incertezas. O que fazer com os períodos regulares de ensino sem o presencial? É possível seguir de modo remoto? Existe educação remota em um sentido válido? Aula on-line é “aula”? É possível aprender e ensinar, de fato? E agora?
A ideia de que o nosso modo de funcionamento não estava bom também é válida para a educação. A desigualdade de resultados e oportunidades promovidas pela educação, preexistentes à pandemia, se acentuaram, é o que estamos vendo. O mal-estar na educação é uma conclusão insofismável. Para tornar a situação ainda mais crítica, o próprio ministro da educação, pastor Milton Ribeiro, afirmou em uma entrevista recente, entre outras barbaridades, que a questão da desigualdade educacional “(…) não é um problema do MEC, é um problema do Brasil. Não tem como, vai fazer o quê?” (SOARES, on-line). As classes populares estão à deriva na pandemia e a educação será mais uma deterioração sentida. Diante desse quadro devastador, a universidade pública precisa não apenas decidir sobre seus próprios caminhos para o ensino, mas pensar e formular com a sociedade que país queremos agora, diante da crise sanitária e também educacional.
Entendo que o problema da passagem do presencial para o remoto não deve ser visto simplesmente como a adoção de uma nova prática de ensino e uma didática correspondente que precisa ser apenas recomendada ou recusada. Essa seria uma forma pouco cuidadosa de lidar com a situação. Vejo mais construtivo situar a questão seguindo, por exemplo, os termos em que Paulo Freire discutia a educação. Sim, Paulo Freire ainda tem muitos a nos dizer, mesmo durante a pandemia. Para ele, com a educação buscamos dar sentido à nossa presença no mundo (FREIRE, 2000, p. 38). Esse é o sentido transformador da educação freireana: inconformidade com uma prática meramente reativa e formativa de ações criadoras, à procura de uma outra realidade, emancipada das condições opressoras impostas. Para tanto, não me parece muito consequente agora qualquer abordagem que precipita uma tomada de decisão sobre a docência sem observar a condição neoliberal, mas também o tempo da pandemia.
Com Paulo Freire, o que estou afirmando é a necessidade de uma leitura do mundo (FREIRE, 2011, p. 19), do que agora nos acontece, levando em conta o que nos condiciona. Qualquer que seja o caminho adotado sobre o ensino, precisa ser precedido de uma leitura do mundo como “inteligência do mundo”, ou seja, que nos situe com lucidez diante dos desafios e da necessária transformação, se estamos comprometidos com a sorte da educação da maioria popular e dos destinos da própria universidade pública, da sua autoridade pedagógica e até da sua sobrevivência. Penso que não nos interessa uma volta à normalidade preexistente. Ela é responsável pela própria crise sanitária. Tampouco nos interessa um “novo normal”, apenas um eufemismo para não sairmos do lugar. Na verdade, ele nos levará mais velozmente para o abismo. No ponto em que estamos, impossível não admitir os riscos, sejam quais forem as nossas escolhas. Citando novamente Paulo Freire (2000, p. 30): “(…) como presença no mundo, corro risco”.
Ainda em abril, atendendo a um chamado aberto pela Escola de Extensão da UFRRJ para submissão de propostas, lecionei um curso on-line de 30h, em dez encontros semanais, sobre Paulo Freire (BERINO; CABRAL, on-line/b). Em junho iniciei uma segunda turma do mesmo curso. Rapidamente, nos dois casos, as vagas foram preenchidas. Muitos estudantes da graduação e da pós-graduação, de diferentes licenciaturas, tinham interesse em estudar no período, de modo remoto. Nos dois casos, aproximadamente 50% dos inscritos seguiram até o final do curso, cuja proposta era a leitura e discussão de cinco obras de Paulo Freire. Agora, nos Estudos Continuados Emergenciais, estou repetindo o mesmo no PPGEduc/UFRRJ, com uma carga horária um pouco maior: 45h. Precisei ampliar para quarenta as originais quinze vagas previstas, tal a procura. Na graduação, no curso de Pedagogia do IM, em Nova Iguaçu, estou lecionando para uma turma de 25 discentes. Nunca havia lecionado na modalidade on-line, tinha apenas uma experiência, não muito significativa, com EaD, também através da UFRRJ.
Trata-se de uma breve experiência que estou narrando como partilha sobre a minha docência agora, durante a pandemia. Não é uma exortação, apenas uma comunicação para as muitas conversas que precisamos realizar se desejamos amadurecer os caminhos do ensino a partir da pandemia. O curso de extensão foi feito exclusivamente de modo síncrono. Já durante os Estudos Continuados Emergenciais, a prática é síncrona e assíncrona. Está claro que o ensino mediado pelas tecnologias digitais só poderá adequadamente ocorrer observadas algumas garantias e condições para docentes e discentes. Sem recursos e internet satisfatórios, o resultado será seguramente péssimo, como tem acontecido, basicamente, nas grandes redes públicas (COELHO, on-line). Também é preciso formação adequada para essa prática de ensino. Os desafios pedagógicos são muitos. Tenho contado com o apoio de algumas orientandas[1] da pós-graduação na minha docência on-line. Tem sido um apoio fundamental para a realização do meu trabalho de modo mais seguro e de maior correspondência com as turmas.
A minha experiência é em uma universidade federal e até agora controlada, se comparo com as muitas narrativas sobre o magistério na pandemia. Os encontros até agora, nos cursos relatados, alcançaram bons resultados, posso afirmar. Importante frisar que curso de extensão e Estudos Continuados Emergenciais não são situações limites. A pequena experiência acumulada indica para mim que um semestre regular remoto poderá se transformar em um cenário de muitos problemas se não avançarmos na discussão sobre as condições para o ensino e aprendizagem, inclusive sobre a prática pedagógica curricular adotada. Aí existe o prenúncio, sim, de uma “EaD piorada”. É uma ameaça real. Estamos, como já apontei, em uma situação de riscos diante das escolhas que precisam ser feitas (e já estamos fazendo). No entanto, não aceito a ideia de que, por princípio, a educação em um sentido válido não existe através do on-line. Educação é uma prática social e historicamente construída, não tem uma natureza intrínseca, ela também se transforma. Educação é criação.
A leitura do mundo é agora crucial. O deslocamento da educação para o mundo da internet comporta muitas ameaças para a educação pública. As chamadas big techs encontram na pandemia uma oportunidade de expansão dos seus interesses. É o caso de serviços como Google Classroom e Microsoft Teams. Com razão, o teórico da comunicação Marcos Dantas adverte que estamos “entregando para essas plataformas a própria formação da identidade e da cultura brasileira” (SANTOS, João Vitor, on-line), através dos dados que produzimos nelas. O desenvolvimento acelerado dos serviços e mídias digitais estão intimamente relacionados à virada neoliberal na economia capitalista. É importante saber em que território estamos pisando. E mais, não se trata apenas de informação. Big data é muito mais do que isso. Diz o filósofo Byung-Chul Han (2018, p. 107), “A psicopolítica neoliberal é a técnica de dominação que estabiliza e mantém o sistema dominante através da programação e do controle psicológicos”. O engajamento na internet é um enredo do poder, não podemos negligenciar, ainda mais nos assuntos da educação.
São questões que não estávamos muito atentos até recentemente e agora, também pela pandemia, mas não apenas, precisamos prestar mais atenção. Por outro lado, ignorar o tempo da pandemia também não me parece razoável. Estamos no final de 2020 e não creio que vamos ter condições de uma volta às aulas presenciais sem sobressaltos para breve (LOPATKA; STRAUSS, on-line). Lembrando que a pandemia não acabou, ainda não temos vacina nem tratamento. A universidade pública está sob ataque constante e a educação no coração das guerras culturais, movidas pelo próprio governo Bolsonaro. Já estamos em uma zona de riscos e como atravessá-la é algo que precisamos discutir para estabelecermos compromissos. Diferente disso, vejo como uma prática negacionista. Acho válido conhecer o que pesquisadores da educação on-line estudam há algum tempo (SANTOS; SANTOS, 2013) e situar no campo das lutas populares agora. Seja como for, só um debate aberto e franco poderá nos oferecer elementos para a maior lucidez sobre a nossa responsabilidade na universidade pública.
(*) Aristóteles Berino é professor do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar (DES/IM) e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) da UFRRJ.
REFERÊNCIAS
ALTINO, Lucas; PORCIDONIO, Gilberto. Escolas fecham ou suspendem turmas após casos ou suspeitas de coronavírus entre alunos no Rio. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/volta-as-aulas-escolas-voltam-fechar-ou-suspendem-turmas-apos-casos-ou-suspeita-de-covid-19-24686637>. Acesso em: 12 out. 2020.
BERINO, Aristóteles; CABRAL, Talita. O “novo normal em tempos de pandemia”: a sociedade capitalista em questão. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-doc/announcement/view/1113>/a. Acesso em: 12 out. 2020.
______. Paulo Freire on-line: um ensaio estético. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-doc/announcement/view/1130>/b. Acesso em: 13 out. 2020.
COELHO, Tiago. O ano da luta: A difícil batalha dos alunos pobres para conseguir estudar durante a pandemia. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-ano-da-luta/>. Acesso em: 13 out. 2020.
CRUVINEL, Janaína Junqueira Valaci; KLINKE, Karina. Precarização do trabalho docente em tempos de pandemia: a experiência de Minas Gerais. Disponível em: <https://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/precarizacao-do-trabalho-docente-em-tempos-de-pandemia-a-experiencia-de-minas-gerais/>. Acesso em: 11 out. 2020.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian Laval. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2011.
______. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
JANSEM, Roberta. Nem vacina garante volta à normalidade. Disponível em: <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,nem-vacina-garante-volta-a-normalidade,70003392859> Acesso em: 12 out. 2020.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia da Letras, 2020.
LOPATKA, Jan; STRAUSS, Marine. Em pânico, Europa se prepara para a segunda onda de covid-19. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/mundo/em-panico-europa-se-prepara-para-segunda-onda-de-covid-19,eeddfa52f01a010b8c9a9a382121783aswhtnutj.html?fbclid=IwAR2g5UVuwUvH_b4QUf-ufhhGeFxjpeLS2hfwly8k7ivoCucksUX-esY9WZA> Acesso em: 14 out. 2020.
MARQUES, Luiz. O capitalismo e o colapso ambiental. 3ª ed. revista. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.
MENDONÇA, Heloísa. “Em meio à pandemia, fomos tratados como números”, diz professor demitido da Uninove. <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-24/em-meio-a-pandemia-fomos-tratados-como-numeros-diz-professor-demitido-da-uninove.html>. Acesso em: 11 out. 2020.
NAPOLITANO, Celso. Dois meses de suspensão de aulas: o trabalho brutal de professores em uma quarentena sem folga. Disponível em: <http://fepesp.org.br/noticia/dois-meses-de-suspensao-de-aulas-o-trabalho-brutal-de-professores-em-uma-quarentena-sem-folga/>. Acesso em: 11 out. 2020.
OLIVEIRA, Maria Eduarda. Pandemia revela a escravidão da mão de obra dos aplicativos. Disponível: <https://d.emtempo.com.br/economia/219985/pandemia-revela-a-escravidao-da-mao-de-obra-dos-aplicativos>. Acesso em: 11 out. 2020.
SANTOS, João Vitor. A privatização da educação através das plataformas de ensino remoto. Entrevista especial com Marcos Dantas. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/603420-a-privatizacao-da-educacao-atraves-das-plataformas-de-ensino-remoto-entrevista-especial-com-marcos-dantas>. Acesso em: 14 out. 2020.
SANTOS, Rosemary dos; SANTOS, Edméia Oliveira dos. Práticas Multirreferenciais de educação online: Expressões de uma pesquisa. Revista Eletrônica de Educação. São Carlos, v. 7, n. 2, no. 2013, p. 153-172. Disponível em: <http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/715>. Acesso em: 14 out. 2020.
SOARES, Jussara. Volta às aulas no País e acesso à internet não são temas do MEC, diz ministro. Disponível em: <https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,voltas-as-aulas-no-pais-e-acesso-a-web-nao-sao-temas-do-mec-diz-ministro,70003450120>. Acesso em: 12 out. 2020.
WALLACE-WELLS. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[1] A mestranda Valdeléia Maria dos Santos e a doutoranda Janaína Rodrigues de Freitas Machado Eduardo.
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