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‘Estamos no limiar de uma transição’

Professor Raimundo Santos, da UFRRJ. (Foto: acervo pessoal).

Professor Raimundo Santos, da UFRRJ. (Foto: acervo pessoal).

Entrevista com Raimundo Santos, professor da UFRRJ desde 1989 e autor dos livros “Os agraristas políticos brasileiros” (2007) e “O marxismo político de Armênio Guedes” (2012). O cientista político analisa o quadro político do Brasil na atualidade, com destaque para o papel dos grupos de esquerda nesse processo.

 

Como o senhor avalia o atual momento político do país, com a polarização entre grupos pró e contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff?

 

Raimundo Santos – Vivemos num tempo de águas turvas que tornaram a política, de práxis inteligível e terreno para a busca de entendimentos e soluções, em um lugar de exposição de obscuridades que ora ameaçam conduzir nossos passos. Há uma polarização criada por Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) para separar uns de outros, impondo que se tome um dos lados contrapostos no seu lema “nós e eles”. A larga difusão, por mais de uma década, desse tipo de polarização tornou-se fonte de um sentimento de confronto desconhecido entre nós nas dimensões que vem assumindo. Ele se espalhou em áreas do tecido social, inclusive se estendeu nas mobilizações contra o governo.

 

Lula e o PT fazem de tudo para converter a pregação do “nós e eles” em tensão principal do país, como se o Brasil não fosse um país moderno. Os protestos de junho de 2013 vieram interditar essa visão simplificadora da vida nacional. Chamaram a atenção para o grande distanciamento existente entre a sociedade complexa que somos e o sistema político democrático. Esta é a questão fundamental que continua posta.

 

A polarização se repetiu na campanha eleitoral de 2014?

 

RS – Ela não deixou prosperar tendências despolarizantes, como a de Marina Silva. Dilma e Aécio convergiram no trabalho pesado da sua desconstrução, com isso esvaziando o espaço de pluralização que a terceira candidatura competitiva tentava abrir.

 

De 2015 para cá, Lula e o PT enrijeceram sua mentalidade simplificadora, recusando-se a ver o alcance do que ocorria na sociedade em relação ao sistema político e o sentido geral renovador das manifestações de milhões de pessoas que saíram às ruas. Lamentavelmente, conseguiram levar movimentos sociais, partidos e correntes de esquerda para dentro da pregação do lema “nós e eles”.

 

Movimentos favoráveis ao governo acusam os opositores de “golpismo”. O senhor, que é testemunha desses dois momentos históricos, acha que é razoável a comparação entre hoje e o contexto do golpe civil-militar de 1964?

 

RS – Lembrar 1964 estimula a discussão autocrítica a tempo de o PT se portar, neste instante conturbado, sobretudo no futuro próximo, como “esquerda positiva” – termo com o qual, no tempo de Jango, o líder trabalhista Santiago Dantas cobrava responsabilidade política das esquerdas de então. O governo Jango era um governo nascido, após a renúncia de Jânio Quadros e os acontecimentos da posse, em meio a compromissos firmados no quadro político da época. As esquerdas não só se radicalizaram, tensionando uma conjuntura muito instável, como combateram o próprio Jango. Elas denunciaram o que chamavam de “conciliação”, contribuindo e muito para o isolamento político do presidente às vésperas da sua destituição. Não se concentraram na denúncia e luta contra a conspiração golpista que avançava à luz do dia (ver a autocrítica do PCB feita, em 1967, nesses termos).

 

O outro ponto que a alusão oficialista ao passado destaca é a presença das classes médias no imediato pré-64. Esta referência pretende associar as camadas médias de agora a um conservadorismo que lhes seria próprio.

 

Nesta questão, é útil ir a 1964 para refletir sobre a pretensão das esquerdas de então de construir no Brasil uma sociedade homogênea. Esta visão definia a natureza do agir das esquerdas não dirigido ao conjunto da população, pois se orientava pela busca de uma ordem social hegemonizada. Ela exerceu papel negativo na questão das classes médias àquela época de Jango. Depois, durante a resistência política à ditadura, vários setores das esquerdas atuaram com a perspectiva da recuperação das liberdades democráticas. Neste contexto, a mobilização de segmentos das camadas médias, principalmente os do mundo da cultura e da intelectualidade, foi decisiva para generalizar no país o movimento de opinião pública contra o regime de 1964.

 

Há várias décadas os pecebistas abandonaram todo projeto de mudanças que implique simplificação social e política da vida nacional por considerá-lo contrário à complexidade da sociedade brasileira, moderna, de alta diferenciação social e econômica, possuidora de uma diversidade cultural que enriquece, dá vida e colorido à pluralidade e ao padrão de vida dos brasileiros na democracia política.

 

Em caso de a presidente conseguir se livrar do impedimento, que rumos deveriam ser tomados por ela e sua equipe?

 

RS – A situação é incerta nesta sexta-feira (8/4). Não se sabe o quanto vai durar esta situação, e como ela se desdobrará. Aprovado ou não o impeachment, o PT está colocado diante de um fato que terá de equacionar: não tem como levar adiante o seu projeto de poder, o que obriga realizar reflexão autocrítica sobre todo o período dos seus governos, na qual encontrará raízes do fracasso nas suas próprias concepções.

 

O senhor acha que a sociedade brasileira está mais conservadora agora?

 

RS – Há carência de atores e líderes políticos lúcidos. Somos conduzidos pelos fatos. Mas nunca se discutiu tanta política como agora.

 

E qual o papel dos heterogêneos grupos da chamada esquerda – desde partidos até sindicatos, passando por movimentos sociais autônomos que atuam nas esferas extraparlamentares, e que tiveram papel de destaque nas Jornadas de 2013 (como o Movimento Passe Livre, por exemplo)?

 

RS – É preciso insistir neste ponto dos protagonistas lúcidos: as esquerdas foram chamadas a posicionar-se como “esquerda positiva” em situações complexas. Citemos exemplos: elas atuaram responsavelmente após o suicídio de Getúlio, durante o governo de JK, na posse do vice-presidente João Goulart, embora durante o seu governo tivessem postura ambivalente em relação ao processo de reformismo político sob o regime democrático proposto nesse tempo. Mesmo em meio a divisões internas, parte das esquerdas militantes, mais especificamente o PCB, foi resoluta ao colocar no centro da resistência ao regime de 1964 a luta pelas liberdades democráticas, retificando a indecisão dos anos de Goulart. Estas esquerdas tiveram papel decisivo na frente democrática contra a ditadura liderada pelo MDB.

 

Hoje, estamos no limiar de uma transição para seguir adiante no caminho da Constituição de 1988 e seus marcos programáticos. As esquerdas estão chamadas, neste momento, a darem contribuição construtiva.


Postado em 11/04/2016 - 16:46 -

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