Estudo interdisciplinar cria larvas de mosca para uso na alimentação humana e animal
Já imaginou comer um biscoito feito à base de insetos? A princípio, isso pode gerar estranhamento em muitas pessoas da cultura ocidental. Entretanto, o uso de insetos na alimentação humana já é difundido em diversos países como China, Tailândia e Camarões. Além disso, a prática pode ser considerada uma solução inteligente e necessária para redução dos impactos relacionados ao efeito estufa e no combate à fome.
Desde 2013, o consumo humano de insetos já é recomendado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) como alternativa de proteína para combater a fome no mundo. Em documento divulgado pela agência especializada das Nações Unidas, é citada a provável necessidade desse uso em escala global a partir de 2050, quando as projeções apontam que o mundo terá 9 bilhões de pessoas. Além de alertar a necessidade de estratégias de comunicação para promover insetos comestíveis como fontes valiosas de nutrição, a FAO defende que governos e instituições incentivem a normalização deles no consumo alimentício.
No continente europeu, tanto a larva desidratada quanto a farinha da larva de Tenebrio são utilizada em rações para animais. A comercialização de novos alimentos à base de insetos para consumo humano, inclusive, foi aprovada no primeiro semestre de 2021. Com avaliação científica da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA), a decisão autorizou a utilização dessa mesma “farinha amarela” no cardápio e reconheceu os insetos como fonte de proteínas de baixo impacto ambiental que podem ajudar a prevenir deficiências de nutrientes.
Pensando nisso, em 2021, a Rural fechou parceria de pesquisa com a empresa ‘Let’s Fly Alimento de Impacto’ com convênio mediado pela Fundação de Apoio à Pesquisa Científica e Tecnológica da UFRRJ (Fapur). Com expectativa de ampliar a interação entre a startup e a Universidade a longo prazo e envolver outras equipes, o projeto interdisciplinar contou com a participação de professores do Instituto de Zootecnia e Instituto de Tecnologia (Engenharia de Alimentos e Química), além de estudantes da graduação.
Com duração de quatro meses, o experimento inicial foi iniciado em novembro de 2021 e visou desenvolver trabalhos de conclusão de curso de dois discentes de Zootecnia. De acordo com o professor Vinicius Pimentel, do Departamento de Nutrição Animal e Pastagens, além de proporcionar vivência prática, o projeto oferece uma capacitação ligada às tendências mundiais de produção de alimentos do “mundo real” aos futuros profissionais dentro da UFRRJ. “A Rural vai se inserir em um universo muito pouco conhecido mundialmente, porém cheio de oportunidades de negócio, de aprendizado e de ensino”, pontua o idealizador e coordenador do projeto.
Considerado pela equipe como uma porta de inovação de alto impacto social dentro da Universidade, o estudo faz uso da criação das larvas de Black Soldier Fly (BSF), uma espécie de mosca que atua como fonte proteica promissora. Em aproximadamente 20 dias, cada 2 gramas de ovos dessa mosca bioconvertem 10 kg de resíduo orgânico em 1 kg de proteína seca. A equipe interdisciplinar da Universidade acredita, por isso, no potencial das larvas para o desenvolvimento de ingredientes inovadores para a indústria.
Essa espécie de mosca tropical originada no Equador, mas atualmente encontrada em todo o planeta, foi escolhida pela empresa por sua eficiência em termos de criação em larga escala e criação de grande quantidade de proteína seca por metro quadrado. Além disso, o inseto se destaca pela capacidade de se alimentar de matéria orgânica em decomposição e conta com a característica natural notável de reprodução rápida.
De acordo com a professora Maria Ivone Barbosa, do curso de Engenharia de Alimentos, a elevada qualidade nutricional dessas larvas faz com que seu uso se apresente como uma excelente alternativa em relação às de carnes brancas e vermelhas e também de origem vegetal. “Para produzir a mesma massa de proteína, é necessária uma fração da área necessária para produzir a mesma quantidade de proteína animal, sem contar a redução também na quantidade de água demandada. Aproximadamente 40% da fração sólida desse material é composto por proteínas”, acrescenta a pesquisadora.
Para o controle da qualidade do produto, a Universidade foca no monitoramento do nível de contaminação microbiológica e do teor de proteínas, lipídeos, outros nutrientes e compostos bioativos da larva in natura e nos diversos produtos que estão sendo desenvolvidos em parceria com a empresa.
Tratamento de resíduo orgânico
Com as características naturais do inseto sendo usadas para processar alimentos desperdiçados, as larvas utilizadas no estudo se desenvolvem em resíduos orgânicos limpos e podem ser utilizadas tanto como ingrediente na alimentação humana, quanto na produção animal. Ou seja, o material de descarte pode ter um destino sustentável e vantajoso economicamente.
O estudo propõe o uso da BSF como solução para um uso mais eficiente dos recursos subvalorizados e desperdiçados de comida. Sendo assim, o resíduo orgânico, que iria para aterros e lixões a céu aberto, passa a ter um destino mais adequado ecologicamente: a alimentação desses insetos. Em larga escala, a alternativa em questão pode reduzir os impactos do efeito estufa. Diante disso, Bruno Multedo, cofundador e CEO da Let’s Fly, explica que o carbono que deixa de ser emitido na atmosfera é bioconvertido em proteínas, gorduras, carboidratos, minerais.
Solução inteligente
A inclusão de insetos na dieta de animais de produção e humanos, como apresentado pelo projeto, pode ser também um agente relevante no combate à fome no planeta. De acordo com Pimentel, os insetos se reproduzem rapidamente sem depender de combustíveis fósseis. Mesmo não sendo uma alimentação barata de ser produzida inicialmente, eles apresentam menor custo de produção. Ele sinaliza que, quando o sistema de produção é entendido, o processo pode ser feito em casa.
Por serem ricos em proteína, lipídeos e minerais, os idealizadores do projeto propõem a inclusão de farinhas nutritivas da BSF na alimentação humana, além de produtos como barras de cereais e biscoitos com proteína de inseto – que já pode, inclusive, ser encontrado em outros países com diversos insetos. Dessa forma, o professor de Zootecnia pontua que o consumidor não veria o inseto, mas ele faria parte da formulação daquele alimento com todos os benefícios nutricionais.
Barreira cultural e legal
Mesmo oferecendo tantas vantagens, a ‘proteína do futuro’ ainda precisa enfrentar barreiras socioculturais. Apesar de insetos como tanajura e tapuru já serem utilizados na alimentação de brasileiros, o hábito é restrito à questão cultural de populações específicas do país. O coordenador do estudo sugere que a adição de insetos na dieta humana tradicional seja feita gradualmente para que a aversão do consumo alimentício de insetos no país seja superada. “Ninguém vai sentar num bar e comer ali, em vez de um petisco, um inseto inteiro – não, estamos muito longe disso”, explica.
Os insetos contam com entraves culturais e legais para a disseminação de seu consumo humano no Brasil. “Há muitas lacunas em nossa legislação quanto ao uso de resíduos sólidos como substrato, por exemplo. Como todo produto pioneiro, será necessária toda uma jornada para consolidar esse produto em nosso mercado”, afirma a docente de Engenharia de Alimentos.
Inserção gradual
Assim como no projeto, Vinicius Pimentel afirma que a inserção da farinha da larva na alimentação animal acontece com mais facilidade do que na humana. No Brasil, a larva de tenébrio já é utilizada, por exemplo, na alimentação de pássaros. A proposta pode inclusive atender o mercado de animais domésticos que apresentam alergias pelas proteínas normalmente usadas nas rações com o desenvolvimento de testes e rações hipoalergênicas com fontes alternativas.
Na visão de Barbosa, esse pontapé é fundamental para a consolidação da produção dessa larva no país e da garantia do fôlego financeiro, mas ainda não seria suficiente. “É necessário que haja um debate amplo com os órgãos governamentais sobre o uso de insetos como alimentos, pois as instituições de pesquisa nacionais já vêm estudando várias espécies com esse fim. Cabe agora o estímulo para que o caminho da inovação em torno desse mercado seja pavimentado de modo que a população bem informada possa decidir sobre a utilização de mais uma opção segura, saudável e que não agrida o meio ambiente na sua alimentação”, pontua a pesquisadora.
Em vista disso, é preciso ainda avançar em estudos sobre percepção e o comportamento do consumidor através de conhecimento científico e tecnológico. Dentro da Universidade, o professor defende a inserção de projetos de pesquisa, disciplinas e tópicos em disciplinas para divulgar conhecimento antenado com tendências mundiais de produção de alimentos e gerar capacitação de alto nível de recursos humanos.
Na fotografia ao lado, está a equipe envolvida no trabalho. Da esquerda para direita, a sócia da Let’s Fly Carolina Canto, a professora Maria Ivone, o professor Vinicius Pimentel, o CEO da empresa Bruno Multedo, o professor José Lucena Barbosa Júnior e o sócio da empresa Diego Padrón.
Texto: Lidiane Nóbrega – bolsista de Jornalismo da Proext/UFRRJ.
Créditos: imagem 1 – TVI Informação; imagens 2 e 3: Vinicius Pimentel; imagem 4: reprodução.