Aristóteles Berino[1]
Escrevo alguns dias após a comemoração do centenário de Paulo Freire (1921-2021). Especialmente uma notícia que encontrei na internet próximo ao dia 19 de setembro e outra posterior me chamaram a atenção. A primeira delas, do dia 16, dizia no seu título que “Justiça proíbe União de ‘atentar contra a dignidade’ de Paulo Freire”. A outra, do dia 24, informava no seu título que “É #FAKE que Paulo Freire nunca lecionou e que não tem nenhum título na área de educação”. Ao me deparar com as duas notícias experimentei uma sensação de suspensão da realidade, um instante de incredulidade sobre o próprio real. “O que estou lendo?” Permaneci com a pergunta por alguns breves segundos em uma espécie de vacuidade, até recobrar plenamente o pensamento.
Apenas com a ascensão do populismo de direita no Brasil, que levou à presidência um racista, homofóbico e misógino, poderíamos ver Paulo Freire, em uma data tão especial, precisar de garantias legais e checagem de informação para ter a sua integridade humana e biográfica asseguradas. Não que antes não tivesse sido perseguido. Já em 1963 era possível encontrar nos jornais a “acusação” de ser comunista. Após o golpe civil-militar de 1964 foi preso por setenta e dois dias e foi necessário partir para exílio no estrangeiro para evitar algo ainda pior. Só retornou com a anistia política, definitivamente, em 1980. Mas pensávamos que isto tudo tinha ficado para trás, quando no ano de 1997 ele nos deixou e em 2012 foi declarado Patrono da Educação Brasileira.
No entanto, pelo menos desde as manifestações de 2015, que pediam o impeachment da presidenta Dilma, que o assédio contra Paulo Freire recrudesceu, provocado por extremistas de direita, somando-se a movimentos reacionários no campo da educação que já estavam perseguindo-o, como o Escola sem Partido. Não que ele não possa ser criticado, pelo contrário. Paulo Freire foi um personagem do século XX e, como tal, escreveu uma obra datada historicamente. Inclusive, quando Pedagogia do Oprimido foi publicado, em 1970, nos EUA, intelectuais feministas viram sexismo da linguagem ali. Para um autor, normal receber crítica dos seus contemporâneos e ver seu legado minuciosamente examinado pelas gerações seguintes. No entanto, estamos assistindo outra coisa em evidência.
Os dois conteúdos jornalísticos a que me referi tratam de outra coisa, dizem-nos a respeito das tentativas de manchar a memória de Paulo Freire, através de calúnias e mentiras. Paulo Freire fez cem anos não exatamente debatido por seus críticos mais radicas. As polêmicas intelectuais existem e são importantes para os seus leitores agora também, se desejam estudar Paulo Freire com o rigor necessário. Mas o que encontramos em destaque é muito mais a deflagração do ódio contra ele. Uma repulsa indigna que precisa ser entendida. Algo que esse desprezo vulgar nos ensina é sobre a intranquilidade dos seus propagadores. O que e quem Paulo Freire ameaça? Educadores progressistas e democráticos precisam perseguir essa resposta.
Paulo Freire nos legou uma obra que, desde a sua tese, Educação e atualidade brasileira, de 1959, até o seu último livro publicado em vida, Pedagogia da autonomia, em 1996, situa a educação mais amplamente no campo da prática política. Para Paulo Freire, a prática educativa é politicamente orientada, uma concepção que está presente em toda a sua obra e em todas as atividades que desenvolveu como educador. Quando lemos Paulo Freire e sabemos da sua biografia, o que encontramos, de modo absolutamente coerente em toda a sua trajetória, é uma procura pela plena realização humana, eticamente implicada com a sorte da maioria oprimida e esteticamente concebida como uma fruição do comum na criação da beleza.
Paulo Freire viu na educação um comprometimento com a transformação, em dois sentidos que se completam. Transformação social, no sentido de que a realidade da opressão e das desigualdades precisa ser resolvida em favor dos oprimidos. Associado à luta pela mudança, transformadora da realidade social, está posto também o problema da transformação como um processo de conscientização, de crescente compreensão pessoal da existência como presença no mundo e consequente capacidade de problematização da condição em que nele nos encontramos, culturalmente referenciado e socialmente situado.
A obra de Paulo Freire não contém as mesmas ideias desde o seu início, naturalmente. Seu pensamento experimentou inflexões e revisões. No entanto, há uma preocupação a propósito da nossa condição existencial, em diferentes contextos, que permaneceu ao longo dos seus escritos. Paulo Freire foi um intelectual incomodado com o problema da opressão, e viu na educação um modo de desvelar o poder e lutar contra ele. O que chamamos de “Método Paulo Freire”, basicamente é isso, partindo das situações existenciais dos educandos, uma formulação pedagógica sobre a necessária autonomia do conhecimento para o oprimido com uma finalística de emancipação – poder formular sua presença no mundo em termos próprios e reconstituí-la.
Então, a educação é política porque ela faz parte do poder. Por isso foi preso após o golpe e precisou sair do país para não ter a vida ameaçada. Quando se discutia a anistia política, uma suposta lista incluía Paulo Freire entre aqueles que não receberiam passaporte e, portanto, não poderiam retornar ao país. Um mandado de segurança garantiu o documento. A concepção de educação de Paulo Freire, desde que ficou nacionalmente conhecida especialmente após a campanha de alfabetização na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1963, imediatamente provocou nas elites mais reacionárias uma preocupação. Ao desenvolver um método de alfabetização que conscientizava para uma presença libertadora no mundo, entrou em conflito com a ideologia dominante sobre a educação.
O que assistimos hoje, com a prática da comunicação na internet, particularmente nas redes sociais, é um reavivamento da preocupação que Paulo Freire causa na extrema direita. De uma certa maneira, o país não mudou muito. Permanece injusto e desigual. Então, a mensagem de Paulo Freire em favor de uma pedagogia do oprimido é atual, em muitas das suas formulações políticas. As lutas mobilizadas pelos movimentos sociais, sobretudo, incomodam a preservação dos interesses históricos das classes dominantes no Brasil. Na verdade, o país não é o mesmo que Paulo Freire conheceu, mas as lutas permanecem agudas porque as conquistas sociais, quando ocorrem, não são concessões. São vitórias do movimento popular e suas articulações políticas.
Os partidários de um país antidemocrático e socialmente excludente não deixam de ver Paulo Freire em tudo porque sua presença é ainda ameaçadora, proporcional em tamanho à paranoia dos seus críticos mais reacionários. O que a extrema direita vê, delirante, precisamos enxergar de outra maneira. Paulo Freire deve ser lido e estudado. Criticado com liberdade intelectual, sempre que for preciso. Trata-se uma obra extensa e elaborada com sofisticada apreensão dos problemas da sua época, que não estão completamente erradicados do mundo e permanecem bastante vivos no Brasil. Por isso mantém o seu interesse, e quando eticamente questionado, o resultado não é outro senão o avanço do pensamento crítico, que precisa manter-se vivo sempre.
Já na década de 1990, Paulo Freire parecia dividido entre a admissão do que chamava de pensamento pós-moderno progressista enquanto recusava outro, o pensamento pós-moderno neoliberal, reacionário. O fato é que novas teorias se constituíam enquanto sua própria vida avançava. Agora é a própria pós-modernidade que se vê diante de Paulo Freire. O que Paulo Freire tem a dizer? Sua abertura para o diálogo e integridade intelectual parecem aproximar novos e interessados leitores. Paulo Freire representa uma política de amizade, em uma época de significativa fragmentação das lutas e micropolíticas. Nos próximos anos ainda vamos falar de Paulo Freire. Uma longevidade que ele conquistou na luta contra toda forma de opressão. O século XXI também será freireano.
[1] Aristóteles Berino é doutor em Educação (UFF). Docente do curso de Pedagogia da UFRRJ (IM/Nova Iguaçu) e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contexto Contemporâneo e Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ). Representante da UFRRJ no Fórum Estadual de Educação do Rio de Janeiro (FEERJ).