Em 20 de outubro de 1910, era criada a Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, instituição que deu origem à UFRRJ
Nesta terça-feira, 20 de outubro de 2020, a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro completa 110 anos de origem. Sua história tem raízes na criação da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária (Esamv), em 1910, a partir da assinatura de um decreto presidencial que também lançava as bases do ensino agropecuário no Brasil. Herdeira de uma instituição eminentemente agrária, a UFRRJ diversificou sua identidade ao longo de sua história e hoje oferece cursos em todas as áreas do conhecimento, com presença em quatro municípios do estado do Rio de Janeiro – Seropédica, Nova Iguaçu, Três Rios e Campos dos Goytacazes.
“Somos uma Rural totalmente distinta daquela de 110 anos”, disse o reitor Ricardo Berbara. “Naquela época, era uma instituição metropolitana, urbana, branca, masculina e com um perfil socioeconômico de alunos vinculados às classes A e B. Agora, a maioria dos estudantes é formada por negros e pardos, mulheres e pessoas vindas de família com renda média per capita inferior 1,5 salário mínimo. Hoje, a Rural é mais colorida, culturalmente mais diversa e socialmente mais democrática. Continuamos uma instituição nacional e internacional, mas com perfil mais dinâmico e integrado com desafios das regiões periféricas do Rio de Janeiro”.
Vamos, a seguir, percorrer alguns marcos dessa história de onze décadas. Uma trajetória repleta de desafios e transformações, que foram vividos em compasso com as mudanças na sociedade brasileira e no mundo.
A jovem república como pano de fundo
Quando o presidente Nilo Peçanha assinava o Decreto 8.319 e criava a Esamv, em 20 de outubro de 1910, o Brasil era uma jovem república marcada por contradições e desigualdades. Os donos do poder de fato eram os latifundiários, que sustentavam a política do “café com leite” – expressão que simbolizava a aliança entre as elites de São Paulo e Minas Gerais na alternância de governos. Nesse quadro, a democracia era uma fachada; as fraudes eleitorais, os arranjos políticos espúrios e o coronelismo eram práticas comuns; e o liberalismo defendido pelo Estado brasileiro mostrava-se segregador, oligárquico e autoritário. Assim, mesmo que a influência da Belle Époque europeia estivesse em voga – nos projetos de urbanização, nos salões da intelectualidade letrada ou na industrialização crescente – a exclusão de amplas parcelas da população era a ferida aberta de uma época, para elas, nada bela.
Ao longo da Primeira República (1889-1930), crises econômicas, desemprego e inflação castigavam principalmente os mais pobres. Em cidades como o Rio de Janeiro, então capital federal, as reformas urbanas embelezavam praças e alargavam avenidas, mas empurravam os miseráveis para os subúrbios, favelas e cortiços. Trabalhadores e trabalhadoras conviviam com a repressão estatal (a “questão social” era caso de polícia), péssimas condições de vida, jornadas desumanas (que podiam chegar a 15 ou 16 horas diárias) e ausência de uma legislação trabalhista.
Também não fazia muito tempo que o país havia posto fim a mais de três séculos de escravidão, sem que, no entanto, o Estado fornecesse condições mínimas para amparar os recém-libertos. Pelo contrário, a importação de padrões europeus pseudocientíficos reforçava ainda mais o racismo como forma de controle e repressão, e parte da classe política e intelectual acalentava o “sonho” do “embranquecimento” da nação. Portanto, não surpreende que, em novembro de 1910 – a menos de um mês da criação da Esamv – um negro de nome João Cândido, ao lado de outros negros e pobres, liderasse a Revolta da Chibata contra os maus-tratos que os marujos sofriam na Marinha. Mas as bombas lançadas pelos revoltosos, a partir de navios ancorados na Baía de Guanabara, não foram capazes de abalar profundamente as estruturas daquela república racista e patriarcal.
Tendo como pano de fundo essa república, o documento que criou a Esamv também estabeleceu as bases do ensino agropecuário no Brasil. Embora a industrialização estivesse dando seus primeiros passos, o país ainda era essencialmente rural. Com taxas de analfabetismo que giravam em torno de 75%, a precariedade da educação era um obstáculo à qualificação tanto para o trabalho urbano quanto para o rural. E, com o fim da escravidão, estava posto o desafio de preparar uma mão de obra agora formada por trabalhadores livres.
“É nesse contexto que a temática do ensino agrícola ganhou relevo pela necessidade de redefinição das formas de controle e coerção sobre a força de trabalho”, explica a professora Célia Otranto, do Departamento de Teoria e Planejamento do Ensino (DTPE), Instituto de Educação (IE/UFRRJ). “Os agrônomos, organizados na Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), passaram a assumir o papel de porta-vozes dos interesses da classe dominante agrária brasileira, com o objetivo declarado de modernizar a agricultura e desenvolver o país. A SNA foi a grande articuladora do projeto de criação do Ministério da Agricultura Indústria e Comércio (Maic), aprovado em dezembro de 1906”, completa Otranto, que é autora de duas obras que tratam da história da UFRRJ, ambas editadas pela Editora da Rural (Edur) – “Autonomia Universitária no Brasil: dádiva legal ou construção coletiva? ” (2009) e “Uma Viagem no túnel do tempo. A ditadura militar vista de dentro da universidade” (2010).
Metamorfoses e peregrinações
A professora Célia Otranto ressalta o caráter estratégico da Esamv para o Maic, além de apontar que o destino da Escola, em sua fase inicial, também esteve atrelado às disputas intraoligárquicas que marcaram a “República Velha”. “Como primeira representante federal do ensino agrícola, a Esamv sofreu as consequências da crise financeira do Maic e do embate travado por forças políticas que queriam o seu controle. Essas forças políticas tinham origem, principalmente, no estado de São Paulo”, disse a pesquisadora.
A conjuntura de crise e disputas atrasou a efetiva instalação da Escola, que só ocorreria três anos depois de sua criação. Então, em 1913, um prédio nobre – o antigo palácio do Duque de Saxe, localizado no bairro do Maracanã, Rio de Janeiro – foi a primeira sede daquele “embrião” da atual UFRRJ. Contudo, a Esamv foi fechada pouco tempo depois, em 1915. A alegação foi a falta de verbas, mas Otranto afirma que houve pressão da oligarquia paulista, que “tinha sua maior representação na Escola de Agricultura Luiz de Queiroz”.
A partir daí, a Esamv vai começar uma série de metamorfoses institucionais e peregrinações por diferentes sedes. A sobrevivência da Escola foi garantida pelo Decreto 12.012, de 20 de março de 1916, que a fundiu às Escolas Médias ou Teórico-Práticas de Pinheiro e da Bahia. Essa instituição de ensino teve como sede a cidade de Pinheiro – hoje Pinheiral – no interior do estado do Rio de Janeiro. Naquele mesmo ano, foi formada a primeira turma de engenheiros agrônomos, com apenas dois alunos. Já em 1917, diplomaram-se os primeiros quatro médicos veterinários formados pela Escola. Eram tempos de guerra mundial, revolução na Rússia, greves operárias no Brasil por melhores condições de vida e trabalho…
Mas os ares interioranos não fizeram tão bem à Escola, conforme explica Célia Otranto: “Localizada no interior, bem distante da cidade do Rio, a Esamv perdeu parte do seu prestígio e um número considerável de alunos. Ciente das dificuldades, o Maic tomou providências e transferiu a Escola para o Horto Botânico de Niterói”.
Assim, em 1918 – o último ano da Primeira Guerra – a Esamv foi transferida para a Alameda São Boaventura, em Niterói. Em 1920, mais uma mudança em sua estrutura: além de Agronomia e Veterinária, a instituição ganhava o curso de Química Industrial.
A casa niteroiense foi, até então, a de permanência mais duradoura: oito anos. Um período que, de acordo com Otranto, foi importante para a consolidação da Esamv. Porém, mais uma transferência, para o outro lado da baía: em 1927, a instituição era instalada num edifício do Ministério da Agricultura, na Avenida Pasteur 404, Praia Vermelha. “Este era mais um espaço improvisado para a Escola Agrícola, em pleno núcleo urbano do então Distrito Federal”, afirmou a professora.
Uma década de reconfigurações
Naquela sede praiana, talvez os professores, alunos e funcionários da Esamv tenham acompanhado, atônitos, o desenrolar dos acontecimentos que culminariam na chamada “Revolução de 30”. Mais uma vez, o caldeirão político de disputas intraoligárquicas, contradições sociais e reflexos de crises internacionais – como a Quebra da Bolsa em 1929 – chacoalharam a república e levaram ao poder o gaúcho Getúlio Vargas.
Num Estado que passava por uma reconfiguração estrutural – o país vivia, então, a fase do chamado “Governo Provisório” (1930-34) – a Esamv se transformava novamente e adquiria maior prestígio. Em fevereiro de 1934, o Decreto 23.857 dividiu a Escola em três instituições: Escola Nacional de Agronomia (ENA), Escola Nacional de Veterinária (ENV) e Escola Nacional de Química. Em março do mesmo ano, a ENA e a ENV tiveram regulamento comum aprovado e se tornaram estabelecimentos-padrão para o ensino agronômico do país. “Isso significou que, na época, todos esses cursos tinham que seguir, obrigatoriamente os currículos aprovados pela Esamv. A Escola era, portanto, a instituição considerada mais importante do Ministério da Agricultura”, salientou Célia Otranto.
Em 1938, já sob a ditadura do Estado Novo, o Decreto-Lei 982 alterou novamente o quadro institucional: enquanto a ENA passou a integrar o recém-criado Centro Nacional de Ensino e Pesquisas Agronômicas (CNEPA), a ENV subordinou-se diretamente ao ministro do Estado.
O ano de 38 também é um marco porque foi quando se decidiu pela construção de um novo câmpus. “A instituição foi crescendo e o espaço urbano que ocupava em um prédio do Ministério da Agricultura, na Urca, havia se tornado pequeno, além de obrigar seus alunos a percorrer um longo percurso para chegar até o campo de experimentação agrícola, em Deodoro, bem distante da sede”, explicou Otranto.
O local escolhido para a nova sede foi o Km 47 da antiga Estrada Rio-São Paulo, área que então pertencia ao município de Itaguaí. No entanto, levou quase dez anos para a inauguração, em 1947, com a transferência definitiva concluída no ano seguinte. Uma casa que, ainda hoje, abriga o câmpus Seropédica da UFRRJ.
Nasce uma universidade
A primeira denominação como universidade ocorreu em 1943 – mesmo ano em que, durante a Segunda Guerra Mundial, os aliados começaram a virar o jogo contra o nazifascismo na Europa. Em 30 de dezembro, o Decreto-Lei 6.155 reorganizava o CNEPA e criava a Universidade Rural. A instituição reunia a ENA e a ENV; os cursos de Aperfeiçoamento, Especialização e Extensão; e os serviços Escolar e de Desportos. Um ano depois, o novo regimento do CNEPA unificou os novos cursos de Aperfeiçoamento, Especialização e Extensão, além de criar o Conselho Universitário (Consu).
É essa Universidade Rural que vai ver o fim da guerra, o começo da Guerra Fria, o término da Era Vargas, a euforia desenvolvimentista dos anos 1950 (“cinquenta anos em cinco”), o despontar da bossa nova, a Revolução Cubana…
Em 1963, ela vai mudar de nome mais uma vez: passa a ser a Universidade Federal Rural do Brasil. Na ocasião, sua estrutura era composta pelos seguintes setores: as escolas nacionais de Agronomia e de Veterinária; as escolas de Engenharia Florestal, Educação Técnica e Educação Familiar; além dos cursos de nível médio dos colégios técnicos de Economia Doméstica e Agrícola (Escola Ildefonso Simões Lopes).
A conjuntura política no país estava quente, prestes a ferver. Desde a década anterior, o projeto nacional-desenvolvimentista e o crescimento de movimentos populares – como as Ligas Camponesas, a União Nacional dos Estudantes (UNE), as comunidades eclesiais de base e os sindicatos – entravam em choque com interesses de investidores internacionais, segmentos das forças armadas, setores do capital nacional, proprietários rurais e grupos conservadores.
As tensões sociais dos anos 50 irromperam no início da década de 60 com mais uma articulação em favor de um golpe, após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. Nova movimentação na sociedade impediu as quebras das normas constitucionais. A posse de João Goulart, com seu leque de alianças que incluía o Partido Comunista, desagradava aos conservadores, que trataram logo de alcançar uma “solução de compromisso”: a instituição, por breve intervalo de tempo, do regime parlamentarista, o qual supostamente reduziria o poder de decisão do presidente. Tal compromisso se mostrou falho e as contradições continuaram a se aprofundar. O golpe civil-militar enfim se articula na virada do dia 31 de março para o 1º de abril de 1964 – e a Rural não vai passar sem feridas pelos anos sufocantes que se seguiriam.
Tempos sombrios
De acordo com Lucília Augusta Lino de Paula, professora aposentada da UFRRJ, a Universidade vai sofrer os efeitos do golpe logo após sua deflagração. “O Consu foi ocupado; o reitor à época, Ydérzio Vianna, foi detido; assim como o presidente do Centro Acadêmico de Agronomia (CAD)”, lembra a docente, que atualmente leciona na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Ao longo do período da ditadura, principalmente na década de 70, a UFRRJ foi administrada por reitores bastante alinhados com o regime. Então, houve um sufocamento de qualquer movimento de resistência”, afirma Lucília, autora do livro “O Movimento Estudantil na UFRuralRJ: memórias e exemplaridade” (Edur, 2012).
Foi sob a ditadura empresarial-militar que se adotou a atual denominação: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Decreto 60.731, de 19 de maio de 1967). Outras transformações aconteceram no período, como a transferência para o Ministério da Educação (sacramentada também pelo Decreto 60.731); e a aprovação do estatuto, em 1970, que ampliou as áreas de ensino, pesquisa e extensão. Em 1972, teve início o sistema de cursos em regime de créditos.
Uma grande expansão também marcou aqueles anos. Em 1966, foi criado o curso superior de Química. Em 1968, as escolas de Agronomia e Veterinária se transformaram em cursos de graduação. Em 1969, foram iniciados os cursos de Licenciatura em História Natural, Engenharia Química e Ciências Agrícolas. Em 1970, surgem mais cinco graduações: Geologia, Zootecnia, Administração de Empresas, Economia e Ciências Contábeis. Em 1976, foram iniciadas as licenciaturas em Educação Física, Matemática e Física.
“Esse crescimento propiciou até o desenvolvimento do Km 49 de Seropédica, pois muitos alunos vieram para morar em repúblicas, em casas, e houve aí uma expansão comercial, digamos assim, provocada e incentivada por essa expansão do número de vagas e de cursos na Universidade”, pontuou Lucília.
O aumento no número de alunos e o caráter gregário dos alojamentos favoreceram, de acordo com Lucília de Paula, a organização estudantil. “Tem até um relato do Vladimir Palmeira, que era uma grande liderança estudantil nacional da época, dizendo que, no Rio de Janeiro, entre 64 e 67, só havia movimento estudantil na Rural. Nas outras universidades, eles já haviam sido sufocados. E isso justamente porque as pessoas moravam juntas no alojamento e dava para fazer reuniões sem ser muito visto. Mas isso, depois de 68, é totalmente sufocado”, disse.
A professora destaca ainda que o movimento estudantil foi se rearticulando no meado da década de 1970, lançando mão de estratégias para despistar a repressão da ditadura: “A organização estudantil política tinha sido proibida por lei. Então, os estudantes criaram centros de estudos. Por exemplo, o Centro de Estudos Agronômicos, o Centro de Estudos Geológicos… que não eram centros de estudos, mas sim centros acadêmicos mesmo. Mas, com esse nome, eles podiam ter uma organização. Esse movimento estudantil começou a ser retomado pelas áreas de conhecimento, fazendo eventos e encontros com a desculpa de que iriam discutir conteúdos, quando, na realidade, isso propiciava uma reorganização política. E aí, em 1979, acontece o boom do movimento de reorganização, com o movimento de abertura e a volta da UNE”.
Do passado ao futuro
A Rural de muitas histórias passeou pela Primeira República em itinerários diversos; na época de Vargas, virou referência no ensino agronômico do país; nos anos 40, mudou-se para o Km 47, casa que é um dos mais belos câmpus do Brasil; e atravessou a tempestade sombria da ditadura, sentindo a repressão na carne, mas resistindo e se reinventando.
Já no período de redemocratização, vai criar seu primeiro curso noturno em 1990: Administração de Empresas. No ano seguinte, teve início a graduação em Engenharia de Alimentos. Também em 1991, a UFRRJ incorpora uma Estação Experimental do Planalsucar, extinto programa do governo federal para desenvolvimento da área sucro-alcooleira. Localizado em Campos de Goytacazes/RJ, o espaço é atualmente um dos quatro câmpus da Universidade, voltando-se especificamente à pesquisa.
Mas é neste século XXI que a UFRRJ vai consolidar a transformação em sua própria identidade. O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), instituído em 2007, representou um divisor de águas. Novos cursos foram criados durante o processo: em 2009, Belas Artes, Ciências Sociais, Direito e Letras; em 2010, Comunicação Social/Jornalismo, Engenharia de Materiais, Farmácia, Psicologia e Relações Internacionais. Também foram inaugurados dois novos câmpus: Nova Iguaçu e Três Rios.
“Prospectando o futuro, não há qualquer dúvida de que a UFRRJ continuará sendo a maior referência científica e cultural da Baixada e de Três Rios. Não apenas no plano acadêmico, mas também político”, afirmou o reitor Ricardo Berbara. “Será cada vez mais o espaço de reflexões, de elaboração de diagnósticos e políticas para o meio socioambiental nessas regiões tão esquecidas pelo poder público. Acima de tudo, participará, juntamente com vários grupos organizados, de ações que nos levem à cultura da paz, da vida plena de oportunidades, inclusiva e democrática”.
Por João Henrique Oliveira (CCS/UFRRJ), com colaboração de João Gabriel Castro (estagiário de jornalismo da CCS)
Imagens: acervo