Por Alessandra de Carvalho (CCS/UFRRJ)
Quando a Baixada também é Brasil
A telenovela é o produto seriado de ficção para televisão mais consumido no Brasil. Ao mesmo tempo, é também coberto de avaliações estereotipadas sobre a utilidade das tramas apresentadas à vida cotidiana dos telespectadores. É comum ouvirmos que novela não presta para nada, mas também há momentos de comoção nacional no último capítulo dos sucessos de audiência.
A acusação de que a novela na televisão apenas venderia um mundo de sonhos, distante da vida real da maioria dos brasileiros, pode ser refutada pelos folhetins produzidos no Brasil a partir dos anos 2000. Encontramos personagens pobres, domésticas e moradores de favelas que se destacam nas histórias. Foi assim com ‘Senhora do Destino’, exibida entre junho de 2004 e março de 2005 pela TV Globo, e que está sendo reprisada pela segunda vez, desde março de 2017.
Senhora do Destino’ costuma ser lembrada pela figura de Nazaré Tedesco, a grande vilã da trama. Mas a ambientação da novela em uma Baixada Fluminense imaginada por Aguinaldo Silva trouxe várias questões de pesquisa para a graduada em Jornalismo (UFRRJ, 2014) e mestra em Ciências Sociais Andreza Patrícia de Almeida Santos. O resultado está na dissertação “Quando a Baixada também é Brasil: um estudo de caso da Baixada Imaginada em Senhora do Destino”, apresentada em maio deste ano no programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS/UFRRJ), sob orientação da professora Carly Machado.
“Quando escolhi estudar a Baixada Fluminense na ficção, quis ver também uma representação de nação. Pesquisar uma novela que retrata a Baixada foi procurar compreender como essa região vai virar o Brasil em algum momento”, explica a pesquisadora.
Ao analisar a obra, ela destaca a importância do contexto em que a novela foi produzida: “Isso é importante porque quando a Baixada se torna Brasil na ficção, tem a ver com o vigor do lulismo nos anos 2000. É uma representação da nova classe C nas novelas”. Os personagens também são bem marcados por essa nova construção. “Dois personagens fundamentais para compreender a Baixada são Maria do Carmo e Giovane Improtta. Eles vivem em mansões construídas por eles mesmos. Eles têm carros importados, moram próximos a shopping centers e universidades, além de outras características semelhantes ao imaginário que se faz sobre a zona sul. Tudo isso é importante para mostrar um novo Brasil”.
Estereótipos
A jornalista avalia que o autor modificou a visão de Baixada em uma estratégia gradativa. Antes, ele mostrou o estereótipo trazido pela mídia, em especial pelo jornalismo, da região como um local violento, onde impera o descaso com os moradores. O estágio final da transição mostra a Baixada como o melhor lugar para viver. “Ao contrário do que se imagina, nesta novela não é a zona sul que representa o Brasil, mas a Baixada se iguala à zona sul como um local em que se pode viver bem”, ressalta Andreza Almeida.
No entanto, a Baixada na novela não é homogênea. Existem dois núcleos: a Comunidade da Pedra, onde há o tráfico de drogas, violência; e Vila São Miguel, com a vida idealizada pelo autor. Ela agrega os núcleos da representação hegemônica e o da representação ideal. A pesquisadora destaca que “em relação ao sentimento de ser Baixada, ambos núcleos exaltam o local onde vivem em contraposição à zona sul”.
Sobre o contexto político apresentado na ficção, Andreza Almeida avalia que Aguinaldo Silva, um imigrante nordestino que foi editor do caderno de polícia do jornal O Globo por muitos anos, acabou se tornando um grande conhecedor do estereótipo da Baixada. Ela destaca mais uma vez as mudanças da realidade interferindo na trama: “Outro fator importante é o ano de estreia da novela. A candidatura de Lindebergh Farias à prefeitura de Nova Iguaçu foi noticiada no Brasil todo. Ele aparecia como o político que veio de fora para reconfigurar a política local”.
O estudo mostra ainda que ‘Senhora do Destino’ não valoriza a figura do novo rico, mas do emergente, que é um trunfo midiático da nova classe C. Ele foi pobre, mas hoje (tempo da novela) é rico a partir do próprio trabalho, que é algo sempre enfatizado na trama.
Por fim, Andreza Almeida ressalta que estudar telenovela é um desafio, pois há a velha ideia de que é apenas um entretenimento banal. “O estudo da telenovela é um olhar atento à sociedade brasileira. O desafio é enxergar além do entretenimento e da prática cultural, porque é uma prática social, vivida, imaginada e comentada pelos brasileiros. No caso estudado por mim, a novela é fruto de um movimento mercadológico, atento ao crescimento de uma classe que valoriza os bens de consumo divulgados pela mídia”.