Nos dias 25 e 26 de julho, em Vitória, no Espírito Santo, ocorreu a 176ª Reunião do Conselho Pleno da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), que debateu as propostas do programa Future-se, do Ministério da Educação (MEC). A associação publicou a Carta de Vitória, sobre a referida reunião e o programa.
Leia o documento abaixo, na íntegra, ou baixe a Carta de Vitoria.
ANDIFES: CARTA DE VITÓRIA
Nos dias 25 e 26 de julho, teve lugar, em Vitória (ES), a
176a Reunião do Conselho Pleno da ANDIFES. Dessa
reunião, resulta esta Carta de Vitória.
O sistema de universidades federais é um patrimônio de nosso povo. Elas representam uma das apostas mais significativas da sociedade brasileira no conhecimento, na ciência, na formação de recursos humanos, no desenvolvimento social e tecnológico, na cultura e nas artes. A educação pública é, desse modo, uma recusa sistemática do atraso e da ignorância, uma opção atual e de longo prazo pela civilização.
Assim, em primeiro lugar, todo debate sobre orçamento deve ter em conta metas pactuadas pela sociedade, tal como expressas no Plano Nacional de Educação — no caso, em especial, a Meta 12, que é a da expansão, com
qualidade, da educação superior em nível de graduação, tendo entre seus objetivos a garantia de aumento expressivo das novas matrículas no segmento do ensino público. As universidades têm contribuído, de resto,
para o cumprimento de todas as metas do PNE, pois são decisivas ao esforço nacional em prol da educação, em todos os níveis e dimensões. Em segundo lugar, tratando-se de um sistema vital para a sociedade, o debate
sobre financiamento, mesmo voltado a medidas de longo prazo, perde bastante do seu sentido, caso não haja uma garantia do funcionamento imediato de nossas instituições, que ora enfrentam um severo bloqueio de
recursos orçamentários e ainda não têm definido o orçamento de 2020.
Foi, porém, nesse contexto de dificuldade orçamentária que os reitores tomaram conhecimento do “Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras — FUTURE-SE”. No dia 16 de julho, uma primeira e mais reservada apresentação foi dirigida pelo Sr. Secretário do Ensino Superior a reitores das universidades e institutos federais. No dia seguinte, 17 de julho, houve nova apresentação, amplamente divulgada e transmitida. Enfim, no dia 18 de julho, foi conhecida a minuta de um projeto de lei, com a abertura de consulta pública e a informação de que será encaminhada ao Congresso Nacional no próximo dia 28 de agosto. Esse, pois, o tempo de definição da proposta do MEC.
Disponível esse material, o debate teve início em todo país. Dessa forma, em nosso Conselho Pleno, dirigentes debateram e trouxeram muitos questionamentos. Naturalmente, foi reiterado diversas vezes o quão delicado
é travar tal debate sem garantia de recursos suficientes para os próximos meses. Em 10 de julho do corrente ano, a Andifes já oficiara ao Excelentíssimo Senhor Ministro da Educação sobre a preocupante situação orçamentária e financeira que atravessam as universidades federais (Ofício Andifes no 094/2019). E a Comissão de Orçamento da Andifes manifestou-se em Vitória sobre iminente colapso orçamentário do sistema: “Com a manutenção pelo governo federal do bloqueio orçamentário, muitas das Universidades ficarão, dentro de poucos dias, impossibilitadas de (a) pagar suas despesas contínuas, como conta de energia elétrica; (b) honrar com os contratos de serviços terceirizados, como os de vigilância e limpeza; (c) comprar materiais, como os necessários para o funcionamento cotidiano de salas de aula e laboratórios.”
Feita a ressalva de que elementos interessantes do programa não são novos e antes reconhecem o que já se pratica virtuosamente no ambiente e no contexto da legislação de nossas universidades, alguns elementos novos não
parecem interessantes. Foram questionados, assim, pontos específicos do Programa FUTURE-SE. Por exemplo, com a exigência de firmar-se contrato de gestão abrangente com uma Organização Social, as universidades ver-se-iam profundamente atingidas em sua autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e mesmo em sua autonomia didático-científica, em conflito com o artigo 207 da Constituição Federal de 1988. Outro exemplo: a proposta de constituição de um Fundo de Investimento sugere um descompromisso crescente com o financiamento público do ensino superior, no que atentaria contra no artigo 55 da LDB (Lei No 9.394, de 20/12/1996), segundo o qual: “Caberá à União assegurar, anualmente, em seu Orçamento Geral, recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das instituições de educação superior por ela mantidas”.
Além desses aspectos estruturantes, que podem comprometer a natureza da instituição e reduzir o compromisso do estado com o financiamento público do ensino superior, foi observado que o Programa exige a modificação
explícita de 16 leis vigentes, contrariando ainda normativas dos órgãos de controle, no que se refere ao trânsito de recursos privados e recursos públicos. Foram feitas, também, ponderações sobre o método de obtenção de um orçamento adicional para as universidades. Com efeito, a simples formulação da proposta atesta o reconhecimento pelo governo da atual e progressiva defasagem orçamentária das universidades, assim como reconhece a excelência da pesquisa e das atividades desenvolvidas em nossos espaços; entretanto, em vez de centrar esforços na retirada dos efeitos perversos da Emenda Constitucional 95, que atingem todo o serviço público e, especialmente, a educação, o Programa oferece uma solução apenas para aquelas instituições que se disponham a renunciar à forma atual de exercício da autonomia garantida pela constituição e a aderirem a um fundo de
investimento, sem que estudos mais detidos amparem ou corroborem a viabilidade desse Fundo, mesmo no longo prazo. Diante dos imensos desafios da educação pública, questionou-se assim a falta de estudos de impacto e mesmo a viabilidade das soluções apresentadas, sendo possível ver antes vagueza e imprecisão nos pontos em que o governo sugere haver inovação e ousadia.
Muito a debater, muito a esclarecer. Como é de nossa tradição, não apreciaremos de forma açodada proposta dessa magnitude e de impacto tão estruturante. O diálogo e a argumentação são nossos elementos, e caracterizam nossa postura diante de autoridades e membros da academia. A ANDIFES sabe então que, no tempo próprio e com a urgência de cada instituição, cada um dos nossos Conselhos Universitários, a quem cabe deliberar sobre a adesão ou não a programas desse porte, não deixará de travar o debate mais aprofundado e cuidadoso. Nesse sentido, também a ANDIFES realizará seminários, com todos os envolvidos, para debate de todos os seus aspectos e consequências.
A ANDIFES mobilizará especialistas, dará voz a nossas comunidades e procurará atuar juntamente com outras entidades científicas, assim como dialogará com todos os parlamentares preocupados com os destinos da educação em nosso país. A ANDIFES conclama, assim, todas as universidades federais a avaliarem os aspectos estruturantes da proposta, assim como suas consequências, à luz dos princípios constitucionais e dos valores mais elevados que orientam a vida universitária. Conclama, enfim, toda comunidade acadêmica e todos os interessados no futuro da educação pública, gratuita, inclusiva e de qualidade, a participarem ativamente desse debate, com a consciência de caber-nos uma manifestação clara e coletiva, por todos os meios, diante do parlamento e da sociedade, tão logo exista uma versão definitiva do projeto de lei.
Vitória – ES, 26 de julho de 2019.