Pedro Henrique Campos, professor do Departamento de História e Relações Internacionais da UFRRJ, autor de “Estranhas Catedrais. As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar”, se tornou fonte diária para o jornalismo nacional e internacional sobre o tema de seu livro. Nesta entrevista, ele avalia as relações de poder entre governos e empresas no Brasil
*Uma versão editada desta entrevista foi publicada no Rural Semanal nº 04/2017
Rural Semanal- Como você avalia mudanças que ocorreram nas transações entre as empreiteiras e o governo na época da ditadura e as que estão sendo evidenciadas atualmente?
Pedro Henrique Campos: Há mudanças sensíveis na atuação desses empresários do regime ditatorial para o período constitucional pós-1988. As principais empreiteiras brasileiras foram formadas nas décadas de 1930 e 1940. Com as obras do período Kubitschek, na segunda metade da década de 1950, esses empresários se organizam em escala nacional, em sindicatos patronais reunindo os dirigentes dessas construtoras. Esses agentes têm participação na derrubada do governo João Goulart e da democracia em 1964 e são altamente beneficiados pelas políticas implementadas durante a ditadura. Medidas como a reserva de mercado para empreiteiras nacionais, isenções fiscais, financiamento facilitado e canalização de boa parte do orçamento para investimentos em obras públicas fizeram essas empresas crescerem bastante no período. Naquele momento, a atuação dos dirigentes das empresas era muito direcionado às agências do poder executivo e aos militares. Para obterem contratos, pagamentos em dia e benefícios, esses empresários buscavam ministros, presidentes de estatais e diretores de autarquias. Com a transição política da década de 1980, as construtoras traçam uma estratégia de se adaptar ao novo momento institucional do país e diversificam suas áreas de atuação, dedicando mais atenção ao Legislativo, às eleições – financiando campanhas -, aos partidos políticas e à imprensa. Essa mudança da ação das empresas tem por objetivo manter o porte e o poder econômico e político que esses agentes tiveram durante a ditadura com a mudança do regime.
RS- As informações dadas por Emílio Odebrecht em recente depoimento causaram alguma surpresa a você? Havia alguma novidade no que ele disse em relação ao que você havia estudado?
P.H.C.: De certa forma, os relatos de Emílio Odebrecht confirmam o que verificamos na pesquisa. Quando ele afirma que esse sistema funciona há trinta anos, a data coincide justamente com o processo de redemocratização. Assim, com a transição política e a retomada das eleições para as diversas instâncias (presidente, governador, prefeitos etc.), assim como a volta do multipartidarismo e o fim da censura à imprensa, temos a participação das empresas do setor junto a essas áreas. Com isso, há o financiamento eleitoral, a atuação para formação de emendas parlamentares ao Orçamento, a ação junto aos partidos políticos e a dinâmica parlamentar. Essas informações não são novas. Elas já circulavam e já estavam amplamente difundidas de maneira episódica e em outros “escândalos” envolvendo a relação das empreiteiras com o Estado. No entanto, o fenômeno ganha realmente mais vida e detalhamento com o reconhecimento por parte dos próprios empresários das práticas ilegais e formas de atuação junto ao Estado nos vídeos divulgados com os depoimentos realizados a partir dos acordos de colaboração. Fica evidente nesses vídeos como esses empresários atuavam para pautar as políticas estatais e como eles se esforçavam para determinar as prioridades e a agenda estatal. Assim, fica explícita a escalada do poder econômico sobre a coisa pública e o poder desses agentes sobre o processo político do país.
RS – A sua pesquisa de doutorado ganhou uma repercussão enorme na imprensa. Houve um momento em que toda semana você estava em algum meio de informação falando sobre corrupção, empreiteiras e poder. Como foi seu relacionamento de pesquisador/especialista com os jornalistas?
P.H.C.: Isso foi interessante, pois o livro foi publicado em 2014. Tentei pressionar a editora para que a obra fosse lançada antes de março e abril daquele ano, para que conseguíssemos aproveitar toda a discussão sobre os 50 anos de golpe de 1964 de modo a reforçar a divulgação. O livro acabou saindo depois (em junho) e, inicialmente, eu fiquei frustrado. No entanto, logo em seguida veio o início da chamada “Operação Lava-jato” e, com isso, fui procurado por vários veículos de imprensa e mídia para depoimentos sobre a pesquisa e a situação atual. Até hoje fico muito inseguro com essas entrevistas, principalmente quando não são por escrito ou ao vivo. Isso porque há uma intensa edição e muitas vezes o sentido do que eu digo é modificado ou deturpado. O copidesque feito muitas vezes altera o viés da minha resposta, quando não encobre certas partes e passagens que não parecem interessar a certos veículos. Há também uma ênfase excessiva no tema da corrupção nessas entrevistas, assunto que eu não sou especialista. É estranho também perceber certas entrevistas em que o jornalista, antes do seu início, vem me comunicar o que ele quer que eu fale. Tenho tentado me preparar para não cair em certas armadilhas e manipulações que são feitas. Já pensei até em parar de dar entrevistas ou vetar certas empresas de comunicação. Porém, no final, depois de ter consultado certos amigos do ramo, concluí que é melhor falar, tomando todos os cuidados possíveis, do que ficar quieto. Assim, por exemplo, na primeira grande entrevista que eu dei, à Folha de S. Paulo, que tomou uma página inteira do jornal em uma edição de segunda-feira, fiquei muito preocupado com o resultado final, pois após gravar duas horas de respostas a questões por telefone com a jornalista, foi feita uma ampla adaptação do material para a matéria. Estava inseguro com o que saiu, mas, no mesmo dia, o Reynaldo Azevedo fez uma coluna com duras críticas a mim e, na mesma semana, o Luís Fernando Veríssimo recomendou o meu livro, após ler a entrevista. Foi um grande alívio, pois ali eu agradei quem eu queria de fato satisfazer e desagradei quem eu não desejava mesmo que ficasse satisfeito com as minhas idéias e o meu estudo.
RS – Com o tema da corrupção sendo pauta diária na mídia, você acredita que os cidadãos estão mais informados sobre os mecanismos como os representantes políticos agem para se manter no poder ou mesmo para tirar o poder de quem não os interessa? Você tem ressalvas?
P.H.C. Pelo contrário. Penso que a forma deturpada, moralista, descontextualizada com que a corrupção tem sido tratada na mídia atrapalha mais do que ajuda a compreensão e a resolução dessa questão. A imprensa usa o assunto como arma política, agindo no sentido de manipular as pessoas em torno do assunto. Aliás, o uso da bandeira do combate à corrupção como arma política por parte de segmentos conservadores da sociedade não é novidade. Foi assim na campanha do “mar de lama” contra a Petrobrás e os avanços trabalhistas que levaram ao golpe que depôs Getúlio Vargas em 1954 e foi assim antes do golpe civil-militar de 1964, que usou de argumentos anti-corrupção para depor João Goulart e a democracia e também para cassar os direitos políticos de Juscelino Kubitschek naquele mesmo ano. No atual “escândalo”, a instrumentalização da causa do combate à corrupção também foi usada com propósitos conservadores e anti-democráticos. Assim, a deposição do governo democraticamente eleito no ano passado foi feito com base na tese da “”roubalheira”, do “petrolão” e de que vivíamos teoricamente sob “o governo mais corrupto da história do país”. A formação desse senso comum serviu para realizar um golpe de Estado e também para dilapidar a Petrobrás e a engenharia nacional. A imprensa é seletiva nas denúncias de corrupção e a coloca como se fosse apenas um desvio moral por parte de empresários e funcionários públicos, quando se trata de uma estrutura da relação do público com o privado no Brasil e em outros contextos capitalistas. A forma como a corrupção é colocada na mídia e na imprensa também tem um viés despolitizante da dinâmica da coisa pública, que deixa de ser objeto de disputa entre esquerda e direita, ser arena de luta de classes sociais para ser uma disputa entre os “limpos” e os “sujos”, um confronto maniqueísta entre honestos e desonestos. Há um viés moralizante na forma como a mídia toca a questão. Por fim, não há um aprofundamento do conceito de corrupção. Se estamos falando de ilegalidades e de descuido com recursos públicos, deveríamos ampliar o debate e tocar em questões que a maior parte das empresas de comunicação não tocam. Assim, vale a leitura do sociólogo Jessé Souza, que indica que a maior forma de corrupção praticada no país não é a propina a funcionários públicos, mas a sonegação de impostos, principalmente por empresas e indivíduos com grandes fortunas. Assim, Globo e outras empresas envolvidas em graves casos de sonegação de impostos não discutem publicamente essa questão. Se ampliarmos mais ainda o debate sobre corrupção, teríamos que problematizar os esquemas de “corrupção” institucionalizados e legais, como a dinâmica da dívida pública e o endereçamento de boa parte do orçamento e do fundo público, obtido com a arrecadação de impostos, para grandes banqueiros, o capital financeiro e demais detentores de títulos da dívida pública.
RS – No livro (a ser lançado) “Os Donos do Capital: a trajetória das principais famílias empresariais do capitalismo brasileiro”, organizado por você e Rafael Brandão, que famílias/organizações são retratadas? O seu capítulo é sobre que família?
P.H.C.: Esse novo livro, a ser lançado agora em abril, é um projeto antigo. Há alguns anos atrás, Rafael Brandão e eu tivemos a idéia de fazermos uma coletânea de ensaios sobre algumas das principais famílias empresariais do capitalismo brasileiro. A idéia era acessar pesquisadores que tinham estudos qualificados sobre algumas dessas famílias e reunir artigos de cada um sobre os seus estudos de caso. Assim, acessamos especialistas com estudos sobre trajetórias como as do barão de Mauá, a família Guinle, a Johannpeter-Gerdau, a Simonsen, a Klabin-Lafer, a Marinho, a Sarney, a de Valentim Bouças (representante de empresas estrangeiras, como IBM, no Brasil), algumas famílias de empreiteiros (os Odebrecht, os Camargo e os Andrade, em artigo de minha autoria) e algumas famílias de banqueiros (Villela, Setúbal e Moreira Salles). Infelizmente não conseguimos acesso a pesquisas e estudiosos de alguns troncos de trajetórias emblemáticas, como os Feffer, Ermírio de Moraes, Matarazzo, Mindlin, Villares e outros. De qualquer forma, conseguimos identificar certas peculiaridades, padrões, tendências e características na formação dessas famílias. A nossa burguesia nasceu da escravidão e é especialmente autoritária, violenta, truculenta, em geral tem associação com o capital estrangeiro, não tem apreço pela democracia e cresceu e se fortaleceu durante a ditadura inaugurada com o golpe de 1964. A idéia era abordar a classe dominante brasileira, tentando entender mais sobre as marcas desses agentes, em um projeto de voltar a discutir o Brasil, enfocando especificamente esses que nos governam, nos dominam e nos exploram.
RS – Você pode fazer alguma análise sobre a importância/impacto da Operação Lava Jato na história política brasileira ou ainda é cedo para isso?
P.H.C.: Inicialmente, quando estourou a “Operação Lava-jato”, imaginei que seria mais um “escândalo” público envolvendo empreiteiras, como vários outros que já testemunhamos na história do Brasil, como “relatório Saraiva”, “PC Farias”, “Anões do Orçamento”, “Castelo de Areia” etc. No entanto, a ação da força-tarefa ganhou uma proporção que me pareceu peculiar e inédita quando começou a prender os dirigentes das maiores construtoras do país. Para o meu total espanto, eles então começaram a encarcerar também os proprietários e principais controladores dessas empresas. Confesso que nunca imaginei que estaria vivo para assistir à prisão de um integrante da família Odebrecht. Imaginar que uma figura como Marcelo Odebrecht, ou Odebrecht III, ficaria preso por quase dois anos – como ela está agora – é realmente algo surpreendente, tendo em vista que historicamente quem os presos no Brasil são negros, pobres, jovens e moradores de periferia. Também fiquei estupefato pelo fato de que Marcelo Odebrecht era simplesmente o controlador do principal grupo privado da economia brasileira, assim indicado como o “empresário mais poderoso do país” ou “dono do Brasil” em certos circuitos. Ao ver isso, imaginei que alguma coisa muito séria e grave estava ocorrendo. A operação, apesar de ter o mérito de trazer à tona as práticas ilegais cometidas nessas empresas, tem uma série de aspectos negativos. Assim, ela usa métodos autoritários e típicos de Estado de exceção, como uma relação problemática com a mídia, com a divulgação seletiva de provas, depoimentos e áudios obtidos de forma ilegal, o uso deliberado e arbitrário de condução coercitiva e prisões temporárias e preventivas. Assim, ela foi usada para a justificativa e serviu de instrumento para a realização de um golpe de Estado no país em 2016. Por fim, as consequências da operação para a economia do país são nefastas, com a quebra das empresas – ao invés de se punir apenas os agentes das ilegalidades -, a destruição de postos de trabalho e a interrupção de obras e projetos. Assim, os mecanismos sobre os quais as ilegalidades são cometidas não estão sendo em geral atacados, ao passo que o setor de engenharia está sendo desmantelado no país, com a abertura para a chegada de empresas estrangeiras. E nada indica que essas empresas são menos corruptas que as nacionais.